Contos marroquinos


(Por: Mariano Andrade... sempre prefiro escrever na terceira pessoa, mas desta vez não tem muito jeito...)

Numa certa noite de semana no Rio de Janeiro, fui ao cinema com minha esposa. Quando voltávamos para casa, eu dirigia seu carro e fui parado numa blitz da lei seca. Soprei e fui liberado, mas para minha surpresa, o funcionário da blitz me comunicou que o veículo seria apreendido. O carro era novo, com impostos pagos, emplacado, então por que seria apreendido?

Carros novos são isentos de vistoria anual nos dois primeiros exercícios. Minha esposa sabia disso, mas não sabia que ela tinha que comparecer ao posto do Detran para tirar o papel. É o serviço de nome irônico “poupa-tempo”. Ora, se não precisa de vistoria, não basta pagar o imposto?



Bem, desconhecimento da lei não é desculpa para que ela não seja aplicada e multa era devida. O ponto aqui é a burrice embutida na lei. Ter o veículo apreendido com todos os impostos quites pelo simples fato de não ter o papel é quase análogo ao sujeito ser autuado no meio da rua pelo fato de não portar consigo sua declaração anual de imposto de renda. A multa já bastava.

Pior do que a idiotice da lei, é a consequência. Enquanto discutíamos com o funcionário da blitz, um outro veículo recebeu sinal para parar, mas resolveu acelerar e partiu. Diversas vozes cantaram a placa, todas erradas, exceto a última. Singelamente, perguntei ao funcionário “supondo que tenham acertado a placa, o que acontecerá com este motorista?”. “Ele está frito”, respondeu. Pedi para que qualificasse melhor, ao que ele informou que teria que pagar uma multa de cerca de R$ 500. Detalhe: poderia pagar pela internet. Fritura barata essa...

Compare-se com o calvário que a minha esposa teve que enfrentar simplesmente por não ter o papel. Primeiro, comparecer à sede do Detran no centro do Rio para tirar um nada-consta do veículo. Depois, pagar uma multa de valor similar à do motorista fujão. De posse da multa paga (em dinheiro, para agilizar), dirigir-se até Campo Grande – onde ficava o depósito de veículos assinalado no boleto do reboque – para retirar o seu carro. O transporte até lá custa uma bela grana e um tempo em que deixa de produzir. Ao chegar lá, descobre que tem que pagar duas diárias (também em dinheiro), pois o funcionário esperto registrou o reboque como ocorrendo às 23:55h (embora tenha acontecido bem depois da meia-noite). Deu sorte de o carro estar lá, pois um outro cidadão desesperado descobrira que seu veículo havia sido erroneamente deslocado para a Fazenda Botafogo, embora seu canhoto do reboque indicasse Campo Grande.

Resumo da opereta: um dia de trabalho perdido de um cidadão por conta de um papel, um gasto muito superior aos R$ 500 do outro motorista, e a certeza de que a lei é burra pois contribui para afundar cada vez mais a produtividade do país e favorece o infrator.

Para tranquilizar os leitores, informo que na blitz fica um funcionário filmando toda a ação, para “garantir a segurança” do motorista parado. Ah, sim, agora fiquei tranquilo.

Alguns meses depois, viajamos ao Marrocos. Um dos passeios que fizemos (aliás, recomendadíssimo) foi pegar um tour de Marrakech até o deserto do Saara, uma viagem de três dias e mais de 1000 quilômetros. Num dos vários “checkpoints” da estrada, o soldado pediu o documento do carro e nosso motorista entregou. Começou uma discussão em árabe, mas eu pude ver no documento que havia uma data marcando dois dias antes. Imaginei que a licença havia expirado e pensei com meus botões: “acabou a viagem, o carro será apreendido, vamos ter que arrumar um transporte de volta a Marrakech, etc”.

Nada disso. O motorista informou que na parada seguinte iria resolver um problema do carro e sugeriu que nós almoçássemos enquanto isso. Paramos, pedimos o almoço e em vinte minutos ele estava de volta com novos documento e adesivo do para-brisas. Sem agendamento, sem fila, sem apreensão. Duvido que tenha pago propina, pois os países árabes normalmente têm leis severas quanto a isso. Talvez tenha pago uma multa, mas o sistema não feriu a produtividade e nem estragou as minhas férias.

Mas aqui, temos a vantagem de ter o cinegrafista nos protegendo. Ainda bem.

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Outra observação da viagem ao Marrocos foi a qualidade do asfalto. As pistas são longe de serem autobahns, na verdade são estreitas e de mão dupla na maior parte. Porém, andamos mais de 1000 quilômetros sem um buraco sequer.

Por que será que lá usam um asfalto de qualidade, com todas as camadas estruturais necessárias? Talvez pelo fato de ser uma monarquia, que não precisa recapear o asfalto a cada quatro anos com intenções eleitoreiras.

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Não é só este pequeno capítulo da nossa lei que é burro. Há diversas peças que empurram para baixo a produtividade do Brasil. Por exemplo, a saída do regime do imposto de renda simples causa uma descontinuidade negativa no lucro da empresa, de tal forma que é melhor não crescer, ou abrir um novo CNPJ. O imposto de aproximadamente 50% sobre o material escolar é uma vergonha para uma pátria que se diz educadora. E por aí vai.

Não vamos mesmo a lugar nenhum.


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