Pãodemia


(Por: Mariano Andrade)


“O ótimo é inimigo do bom”. Todo mundo já ouviu este chavão e ele funciona para 99% das situações práticas que encontramos na vida. Buscar a perfeição, o purismo ou a certeza pode nos levar a perder uma boa oportunidade.

Uma expressão correlata é a “conta de padeiro”. Em certas análises é muito útil aplicar um cálculo simples com números aproximados (e, portanto, a analogia com a conta de padeiro, sem qualquer deboche à classe profissional) para verificar se se uma hipótese parece fazer sentido ou se deve ser para descartada. Quando o cálculo é muito contundente, a conclusão é suficientemente robusta para dispensar refinamentos dos parâmetros ou da metodologia de cálculo.

Exemplificando o conceito: se João afirma que dirigiu do Rio de Janeiro a São Paulo em cerca de 2 horas, o que o leitor pensaria? João parece mentir, mas é necessário apurar os parâmetros. Qual carro ele utilizou? Ele dirigiu de madrugada quando o movimento é menor? Ele tem o passe automático nos pedágios? Qual a distância precisa entre os pontos de partida e de chegada? Qual o intervalo de tempo exato, 2 horas ou 115 minutos? É possível construir cenários onde a afirmação de João é minimamente crível, por exemplo: João dirigiu na noite de Natal, utilizou um Shelby com 700 cavalos-vapor e passe livre de pedágios, saindo do Rio às 23:55 e utilizando 135 minutos para percorrer exatos 380km. Neste caso, a velocidade média teria sido 169 km/h, muito improvável, mas não impossível. A conta de padeiro não esgota o tema.

E se João disser que fez o percurso em aproximadamente 1 hora? Neste caso, obviamente João está mentindo. Basta saber que a distância entre as duas cidades é de aproximadamente 400km e que, portanto, João teria que ter dirigido a uma velocidade média próxima a 400 km/h. Essa velocidade é superior ao recorde já registrado por um carro de F1, de maneira que a “conta de padeiro” leva a uma conclusão tão certeira que dispensa maiores investigações. Tanto faz se a distância é 400km, 420km ou 380km. Pouco importa o carro ou o horário, ou mesmo se o intervalo de tempo exato é 1 hora, 65 minutos ou 58 minutos. Esses ajustes não vão mudar o resultado da análise: João mentiu.

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Certamente as contas de padeiro podem ajudar no tema do covid-19 para mostrar que certas posturas ou proposições são absolutamente levianas.

“Teremos uma vacina eficaz ainda em 2020”. Trata-se de uma falácia. Talvez haja uma vacina eficaz laboratorialmente (lembrete: isso depende dos parâmetros de aceitação estatística), mas admitir que ela terá eficácia prática, estará disponível comercialmente e poderá ser ministrada em escala global é tolice. A vacina que mais rapidamente chegou ao mercado e criou imunização de rebanho foi a da caxumba, e o processo levou quase 5 anos. Alguns especialistas afirmam que nem há capacidade fabril para produzir as doses e a quantidade de frascos necessários para que a eventual fórmula possa ser distribuída em tempo tão exíguo. Só a ditadura Russa terá uma vacina em 2020 – mas basta fazer uma conta de padeiro (homens-hora e testes necessários versus tempo decorrido) para concluir que Putin foi do Rio a São Paulo em 1 hora e que sua vacina atende pelo nome de placebo.

“O correto é ficarmos em lockdown até haver imunização de rebanho”. O mundo tem atualmente quase 20 milhões de casos confirmados. Suponhamos que, pela carência de testagem, esse número seja na verdade 80 milhões. A população mundial é de cerca de 7,5 bilhões de pessoas e, segundo os especialistas, a imunidade de rebanho ocorre com ~70% de imunização. Ou seja, precisamos de 5,2 bilhões de pessoas imunizadas. Se tivemos 80 milhões de casos em, digamos, 4 meses de pandemia, precisaríamos de algo como 260 meses para atingir a vacinação natural. Quase 22 anos. Essa conta de padeiro assume progressão linear da contaminação, o que é questionável, mas uma premissa alternativa não alteraria o resultado final da análise: 10, 15, 20 ou 22 anos de espera são todas proposições igualmente absurdas e demagógicas. Isso significaria que muitos avôs nunca mais abraçariam seus netos e que teríamos anos e anos sem novos médicos, arquitetos, engenheiros e diversos outros profissionais criando sérias lacunas na sociedade. Mas não faltariam políticos no Brasil.



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“A cloroquina não tem comprovação científica de eficácia contra o covid-19 e portanto não deve ser usada” é um bordão que merece um capítulo à parte. Não precisa nem de conta de padeiro, só um pouco de bom senso para diagnosticar essa estupidez.

Evidência empírica é parte fundamental da pesquisa científica. Isaac Newton publicou a Lei da Gravitação Universal em 1687, demonstrando que a força gravitacional entre dois corpos é proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa. Mas desde o início dos tempos, os seres vivos sabem – por observação empírica – que os objetos caem no solo quando não há sustentação. Ninguém se atirava de cima de um morro achando que ia voar, mesmo que não houvesse comprovação científica de que a queda era certa. Muito antes de se conhecer o cálculo estrutural, os povos erigiam construções capazes de suportar a força da gravidade e que ainda hoje embelezam várias cidades, sendo os projetos amplamente baseados no empiricismo. No popular, como dizem os americanos, “if it ain’t broke, don’t fix it”.

Os tratamentos são medidos por prognósticos. O paciente de câncer de pâncreas normalmente tem um prognóstico desanimador, a eficiência empírica dos tratamentos disponíveis é baixa. Mesmo assim, os pacientes enfrentam sessões penosas de quimioterapia porque não há alternativa melhor.

Portanto, afirmar que a cloroquina não deve ser usada por ausência de comprovação não só é irresponsável, mas também é antagônico à prática científica. Estamos lidando com uma doença cujo comportamento não conhecemos ao certo. Se um medicamento antigo, com efeitos colaterais já bem mapeados, produziu evidência empírica de eficácia em um número relevante de casos, por que não usá-lo? Se o prognóstico melhora, porque o paciente de covid-19 deveria ser privado do tratamento? O ótimo é inimigo do bom.

Se a cloroquina não tem comprovação científica, que dirá uma vacina que sequer terminou sua fase de testes! A vacina, uma vez disponível, só terá comprovação de eficiência após alguns ciclos virais. Por que temos que trocar o pneu com o carro andando no caso da vacina mas não no caso do remédio? Cheira a interesses econômicos e políticos ou será que todo mundo já perdeu o olfato nessa pandemia?

O próprio vocábulo “vacina” denota a importância da evidência empírica na ciência. A ideia de inocular agentes causadores da doença (ou seus similares) numa pessoa sadia nasceu da observação empírica de Edward Jenner, publicada em 1798. Ele notou que as pessoas que trabalhavam ordenhando vacas – daí o termo vacina – raramente contraíram varíola. Edward conjecturou que estas pessoas, por terem contato com um vírus similar comum nas vacas, adquiriam resistência à doença.

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A quarentena de março, abril e maio foi importante e necessária. Neste período, os médicos adquiriram mais conhecimento (empírico, diga-se de passagem) sobre o comportamento da doença e puderam observar os tratamentos de maior resultado prático. Houve investimentos na compra de equipamentos, leitos, e EPIs para equipar o sistema de saúde. A sociedade conseguiu se reorganizar em caráter temporário.

Ainda assim, a covid-19 matou muita gente e está longe de ser uma “gripezinha”, portanto houve muitos erros de condução do governo federal. Além disso, STF deu a caneta a municípios e estados para conduzirem suas políticas públicas no tocante à covid-19, abrindo espaço para que feiras de vaidades e agendas eleitoreiras se sobrepusessem à questão sanitária e ao resgate econômico que se fez necessário. Mais um erro grosseiro do STF para engordar o placar e seguir a “liturgia” que virou a praxe da Casa.

A politização da doença por presidente, governadores, prefeitos, parlamentares e imprensa atingiu níveis nojentos e criou um circo onde não existe saída honrosa para nenhum dos extremos. Um desserviço gigantesco à nação, que paga a conta dessa palhaçada toda.

O resultado? Um país perdido, hipnotizado pelo placar diário de mortes do JN e paralisado à espera da redenção: uma vacina salvadora, que já nasça com eficácia estatisticamente comprovada e que se beneficie de uma milagrosa multiplicação dos frascos. Ou então um messias semianalfabeto que descenda de um tríplex praiano para liderar seu rebanho de mulas. Temos doenças tão ruins quanto o covid-19... Tomara que a urna-22 não seja uma cepa tão letal quanto “ventuus estocattum” ou “metax dobradam”.

Enquanto a redenção não vem, vivemos uma situação kafkiana, com bares e shoppings abertos, escolas fechadas (um verdadeiro crime contras as crianças, que têm sua saúde mental seriamente desafiada) e ainda carecendo de um protocolo oficial para fazer o melhor uso do aprendizado adquirido na quarentena, salvando assim mais vidas e voltando à rotina normal com os cuidados pessoais devidos.

Será que precisamos aguardar comprovação científica de que está tudo errado?

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Pão quentinho saindo do forno! Pão e circo...


(Nota posterior - Apenas uma semana depois desta postagem, a China passou a recomendar o uso da cloroquina. Veja aqui. Vai dar nó na cabeça dos chatos de plantão aqui no Brasil, aqueles que defendem as "democracias" chinesa, cubana e venezuelana e que repudiam a cloroquina).

Comments

  1. A sociedade está tão ansiosa por uma vacina que fará tudo para conseguí-lá. Não vamos conseguir algo confiável tão cedo !!!

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  2. Todos estão anciosos pela vacina ou um medicamento eficas contra esse que é o mal do seculo , mas ainda estamos longe desse objetivo...vamos continuar nossas orações pedindo proteção divina e tb em favor daqueles que estão envolvidos nas pesquisas cientificas contra o corona.

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  3. Regina Varoto- Ótima matéria, colocou bom senso no contexto histórico atual.
    Vale ressaltar que ainda teremos, com a chegada da tão desejada vacina, as reportagens futuras sobre a priorização do seu uso para determinadas classes sociais e as suas consequências, certamente causará mortes por falta de testes por não ter respeitado o tempo epidemiológico necessário para sua eficácia e eficiência.

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    1. Obrigado pelos comentários. Fique à vontade para visitar os outros posts do blog. Abs

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  4. Extremamente bem escrito. Leve e ao mesmo tempo profundo, e como sempre, com um bom toque de humor e criatividade.

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