Conteúdo Neto

 

(Por: Mariano Andrade)


“Desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal.” (Millôr Fernandes)

 

Há alguns anos, era comum as embalagens virem com a informação de “conteúdo neto”. É a mesmíssima medida que o “peso líquido” que hoje estampa desde barras de chocolate a sabonetes, ou seja, o peso (ou, mais corretamente, a massa) ou volume de produto sem contar o peso (a massa) ou volume da embalagem. Algumas marcas seguem adotando essa inscrição mais "vintage".


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Felipe Neto conta com um séquito de dezenas de milhões de seguidores nas redes sociais. É inegavelmente um fenômeno digital, em parte por ter sido um “early mover” na aposta de se firmar como youtuber. O cabelo azul também foi uma jogada inteligente como peça de “recall”. “Sabe aquele youtuber de cabelo azul? Você devia checar o canal dele!”, diria um jovem a outro. Seja como for, Felipe é um sucesso. Ganhou fama e fortuna e parece que a bonança subiu-lhe à cabeça, tornou-se cada vez mais polarizador e intransigente ao contraditório.

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Recentemente, Felipe Neto celebrou um TAC – termo de ajustamento de conduta – com o Ministério Público. Foi entendido que seu canal circulava conteúdo impróprio para menores sem os devidos alertas exigidos pelo Ministério da Justiça. Saiu barato para Felipe Neto, já que os milhões de seguidores conquistados com os vídeos apelativos permanecerão lá em seu canal, assim como as receitas deles oriundas. É como manipular o mercado de ações e ter que pagar uma multa de apenas 10% do lucro obtido – no Brasil, analógico ou digital, o malfeito compensa.

Consta do TAC um compromisso de Felipe Neto de postar um curso sobre controles parentais na internet e de como proteger crianças e adolescentes. Do alto de seus 30 e poucos anos e contando com toda a experiência que seus zero filhos lhe proporcionaram no tema, realmente os ensinamentos de Felipe Neto prometem ser seminais e dividir águas na pediatria e psicologia infantil.

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Na época de festas de fim de ano, Felipe Neto foi flagrado jogando futebol. Nada de mais não fosse ele um ferrenho defensor do “fique em casa”, tachando de “genocidas” aqueles que saem às ruas. A resposta de Felipe? “Errei”.

Não, Felipe, não é um “erro”. Se você qualifica de genocida quem não fica em casa, participar de uma partida de futebol não é um simples “erro”, é aniquilar vidas – pela sua própria régua. Afinal, você pode afirmar com 100% de certeza que não contaminou ninguém? E se algum de seus parceiros de pelada morar com alguém de idade ou de outro grupo de risco? Pois é, você se equiparou aos outros “genocidas” mundo afora.

Genocida não é um adjetivo que admita zonas cinzentas. Se quem sai de casa é genocida, quem vai jogar futebol com os amigos não “errou”. Felipe, onde estão os verbos e adjetivos fortes e firmes que você destila em seus vídeos para caracterizar aqueles que têm opiniões contrárias à sua? Que isso sirva de reflexão na hora de você escolher as palavras em seus posts vindouros.

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O erro (agora sem aspas) de Felipe Neto é ter-se rendido à hipocrisia. Os hipócritas sempre nadam nus, e alguma hora a maré baixa. “Você pode enganar poucos por muito tempo ou muitos por pouco tempo, mas você não pode enganar muitos por muito tempo”, diz a sabedoria popular (alguns atribuem a frase a Abraham Lincoln). Felipe, às vezes ter 40 milhões de seguidores pode ser um problema, não? É gente pacas!

Se o leitor buscar no Google os vocábulos “Felipe”, Neto”, e “hipócrita”, encontrará cerca de 500 mil vídeos. Um exemplar bem revelador é este aqui, no qual Felipe Neto diz que as pessoas que têm dinheiro deveriam procurar fazer o bem comum, usar "o bendito do seu dinheiro para alguma coisa (...) para auxiliar a luta das pessoas”. No clip, esse discurso magnânimo é intercalado com imagens onde o youtuber diz que está entrando numa balada de 20 mil dólares e bradando a plenos pulmões “eu quero que o mundo se foda!”. Felipe, o mundo já está fodido: encontra-se completamente idiotizado, basta ver a quantidade de pessoas que pautam seus hábitos segundo posts de influenciadores digitais, a "qualidade" das músicas que bombam hoje em dia e a polarização política acéfala que assola o mundo ocidental.

https://mobile.twitter.com/guilhermehelvis/status/1287951983127736320?lang=pt


(Nota- A busca por “Bolsonaro” + “hipócrita” rendeu 288 mil resultados.)





Não por acaso, Felipe é frequentemente defendido por outro hipócrita que posa de filantropo. O nome dele é parecido com o do monstro verde e ele também já foi desmascarado ao apagar das redes sociais suas fotos trocando sorrisos com Sergio Cabral, Aécio Neves e outros tantos que subtraíram do erário. De cabelo azul a monstro verde, o Brasil vai indo pro buraco negro.

Há um genocídio em curso. Quem está sendo aniquilada é a capacidade de o brasileiro pensar e exercer seu livre arbítrio fora dos tentáculos da patrulha hipócrita de tantas figuras e agremiações lamentáveis. Sem o ambiente propício para o surgimento de novos líderes, caminhamos para Bolsonaro até 2026, o que seria um opção deveras pobre e melancólica para um país como o Brasil.

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O conteúdo Neto, agora com maiúscula, é zero. Tirando a embalagem, não sobra nada.


(P.S. Muito se fala que os veículos de mídia que gozam de concessão estatal têm que cumprir um papel social. O que dizer de influenciadores online que atingem milhões e milhões de pessoas, sobretudo jovens? Esta é uma discussão necessária e premente. Seria interessante que pessoas como Felipe Neto, que atingem uma massa gigantesca de crianças e jovens incentivassem o debate e a reflexão individual, ajudando seu público a buscar a sua própria opinião e identidade.)

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