Dúvida histórica

 (Por: Mariano Andrade)


“A dívida é a escravidão do homem livre” (Plúbio Siro)

A comédia “Soul Man” de 1986 foi estrelada por C. Thomas Howell, no papel de um jovem que se passa por afro-americano para conseguir uma bolsa de cotas raciais em Harvard, depois que seu pai milionário se recusa a pagar o curso. O filme é mediano (na melhor das hipóteses), abusando de clichês e estereótipos.

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O sistema de cotas universitárias vigora no Brasil desde 2012 e recentemente foi prolongado por mais 10 anos. O regime confere privilégio de acesso a universidades públicas para estudantes de certos grupos étnicos e para alunos oriundos de escolas públicas. Teoricamente, o objetivo é reparar a “dívida histórica” com pretos, índios e quilombolas.

Sem entrar no mérito de que os pretos africanos já escravizaram outros povos ou de que havia muitos escravos no Brasil pertencentes a pretos alforriados, considere-se que existia a tal dívida histórica. Bem, se há uma dívida e a sociedade vem pagando seu débito desde 2012, sem que ele sequer tenha sido quantificado, em algum momento a obrigação deve ser quitada. Neste aspecto, o prolongamento do sistema de cotas sem qualquer embasamento é absolutamente bisonho – pode ser rolado até quando? Indefinidamente? Esta dívida será uma escravidão para a sociedade livre?

O estado brasileiro tenta corrigir a desigualdade social da maneira mais ineficiente possível. Se o remédio é ineficaz, o estado – como agente do “credor” da dívida – ao invés de buscar um sistema mais eficiente, opta por estender aquele que não funcionou até agora. É análogo ao credor de uma dívida financeira querer continuar cobrando o débito ad aeternum porque gastou mal (leia-se: torrou) o dinheiro que já recebeu do seu devedor.

O sistema de cotas não tem os “checks and balances” necessários. Deveria haver uma medição de representatividade de profissionais pretos, indígenas e quilombolas nas várias profissões e, à medida que turmas novas logrem a formatura, essa representatividade deveria ser ascendente. Mas não se faz tal censo regularmente – tente o leitor encontrar na internet o percentual de advogados ou médicos pardos ano a ano desde 2012. O que se acha são notícias esparsas e não necessariamente usando o mesmo critério: de toda forma, a pouca evidência que há mostra o fracasso retumbante do aparato. Os dois artigos abaixo dão o tom: “ninguém sabe quantos médicos são pretos”, ou “apenas 3% dos médicos são pretos”.

https://portugues.medscape.com/verartigo/6508199?form=fpf

https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2022/11/30/conselho-federal-de-medicina-aponta-que-apenas-3percent-dos-medicos-sao-negros.ghtml

Ou seja: a dívida continua pesando sobre a sociedade, o dinheiro é mal aplicado pelo estado e – pior de tudo – ninguém mede o resultado ou a efetividade do mecanismo imposto.

 

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Por que o sistema de cotas falha grosseiramente? Porque é a moeda errada para servir uma suposta dívida. Sozinho, mesmo que vigorando por mil anos, ele jamais será capaz de corrigir a desigualdade social no Brasil, e talvez até contribua para piorar o quadro.

Um curso universitário sério pressupõe que o aluno tenha uma base formativa. A seleção com base no Enem e suas questões politizadas já torna o processo viciado – entram os alunos que mais criticam a direita, o homem branco e outros entes opressores. Chega-se ao ridículo de, numa prova de história de 20 questões, somente 2 ou 3 delas abordarem eventos históricos. Além disso, dada a péssima qualidade do aprendizado na rede pública – não por culpa dos professores, esses são heróis de fato – os cotistas tendem a ingressar no 3º grau com sérias deficiências de conteúdo e instrumental.

Para embasar o ponto: entre alunos de 57 países, as crianças brasileiras ficaram em 52º lugar na habilidade de leitura. 

https://www.poder360.com.br/educacao/brasil-fica-em-52o-lugar-em-ranking-internacional-de-leitura/

Outros resultados recentes são igualmente lastimáveis:

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/educacao-brasileira-esta-em-ultimo-lugar-em-ranking-de-competitividade/



Há ainda um outro problema. Muitos cotistas precisam de renda, seja para sustento próprio ou para complemento de renda familiar. Além disso, o curso universitário atrai despesas de transporte e alimentação, bem como investimentos em livros, software e material de trabalho – no caso de médicos, dentistas e arquitetos, o montante pode ser relevante. Para muitos alunos, a conta não fecha e eles são obrigados a se arrastar no curso ou, ultimamente, abandoná-lo por completo.

Em resumo – o sistema de cotas raciais infelizmente privilegia alunos que, majoritariamente, não estão preparados para a universidade, esperando que eles atinjam o final do curso e se coloquem no mercado em posições de destaque. E, de forma bizarra, segue vigorando sem qualquer medição dos resultados alcançados.

Na prática, depois de mais de 10 anos de vigência do mecanismo de cotas e diversas turmas formadas nas mais diversas carreiras, não se vê maior representatividade de advogados, médicos, nutricionistas, engenheiros, psicólogos ou economistas pretos ou pardos. Ao contrário, o que se observa são algumas empresas lançando programas de contratação exclusivos para pretos. O observador casual vai louvar a atitude como um movimento ESG, mas basta um mínimo de pausa para deduzir que, se tais programas são necessários, o sistema oficial desenhado para reduzir a desigualdade falhou por completo.

(Claro, existem casos individuais de sucesso e eles devem ser enaltecidos. Mas a política pública não deve ser guiada pelas exceções).

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Tentar consertar a pirâmide educacional e de oportunidades “por cima” é uma tolice, tanto no âmbito da educação pública como na esfera privada com programas de contratação específicos. É o mesmo que enxugar gelo – ao contrário do que governos progressistas tentam sofismar, o mercado de trabalho é darwiniano e sobrevivem à seleção natural aqueles que têm uma sólida base de aprendizado. Dito de forma mais dura, não adianta o estado fornecer um diploma de advogado a um cotista oriundo de um sistema de ensino fundamental que ocupa a 52ª posição num ranking de leitura envolvendo 57 países. De novo, pode haver exceções, mas a lei dos grandes números vai empurrar o resultado final para o fracasso absoluto.

A idiotia atinge o nível hard quando o sistema estende a primazia de vagas também a alunos que cursaram o ensino médio na rede pública. Resultado esperado pelo estado: ampliar ainda mais o ingresso na universidade aos alunos mais pobres. O que vai ocorrer na vida real: alunos que têm condições de pagar escola privada (e até universidade privada) migrarão para escolas públicas buscando acesso facilitado aos cursos mais concorridos (medicina, por exemplo), já que as cotas raciais consomem muitas vagas – é o famoso “caminho de menor resistência”, é o ciclo vicioso se realimentando. Famílias humildes serão prejudicadas e a desigualdade marcará mais um ponto.

Os recursos despendidos pelo estado na educação terciária poderiam (e deveriam) ser empregados na educação fundamental, garantindo a todos os cidadãos uma formação básica de qualidade. Isso sim seria mirar no problema, tirando o Brasil de posições tão vexaminosas em comparativos internacionais. Não só é obrigação do estado, bem como a única maneira de escapar da atual narrativa escravizante. 

A educação básica de qualidade, no longo prazo, é a única alavanca para diminuir a desigualdade social e, aí sim, “quitar” a dívida histórica. Diz o provérbio chinês: “Se planeja para um ano, plante arroz. Se planeja para dez anos, plante árvores. Se planeja para cem anos, eduque o povo”. Qualquer tentativa de encurtar ou acelerar o processo será fútil, drenando recursos públicos, perpetuando e piorando o quadro de desigualdade – exatamente a péssima escolha que o Brasil fez para os próximos 10 anos.  

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O sistema de cotas no Brasil é mais injusto e mais tragicômico do que o filme pastelão. Chance de funcionar? Zero. Nenhuma dúvida.


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