(Por: Mariano Andrade , com a ajuda do meu amigo Max, moscovita da gema)
O conflito entre Rússia e Ucrânia, deflagrado há poucos
dias, é um marco histórico do século XXI e que pode ter consequências por muitos
anos. Não cabe elucubrar como será a campanha e quais serão as condições da provável
rendição da Ucrânia, ou fazer projeções acerca de novos movimentos russos e possíveis
crises geopolíticas mundo afora.
Contudo, pouquíssimas pessoas pararam para refletir sobre o papel (leia-se
parcela de culpa) do ocidente na guerra que eclodiu esta semana – uma questão absolutamente central e que vem sendo perigosamente negligenciada.
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Putin é sabidamente um autocrata, alguns diriam um
governante ditatorial. Ele toca a Rússia com mão forte e alterou a lei para se
manter no poder até 2036 (pelo menos). Putin persegue inimigos políticos,
inclusive com suspeitas de mortes ordenadas por ele. Ou seja, se Putin fosse um
cão, seria um dobermann bravo.
O povo russo prefere governantes fortes e firmes. A
população entende como necessários para manter íntegro um país com vasta extensão territorial (são 11 fuso-horários), para unir diferentes etnias e
culturas, para prover segurança nacional, bem como para preservar o patriotismo.
Com a ascensão chinesa e a uma fronteira de mais de 4 mil quilômetros separando
os dois países, um governo central sólido tornou-se ainda mais necessário para
os russos. A Rússia tem um problema crônico de natalidade e um território
gigantesco para preservar, enquanto do outro lado da fronteira não faltam pessoas,
poderio econômico e planos bem feitos. Ou seja, os russos gostam e entendem
precisar de dobermanns – não cabe discutir qual raça é melhor, alguns preferem
dobermanns, outros optam por shih-tzus.
Quando brincamos com um cão, a brincadeira depende da raça do
animal. Brincar com um shih-tzu é uma atividade sem risco: você pode fingir que
lançou a bolinha uma, duas, três, cem vezes que sua integridade física não será
ameaçada. Mas tente enganar um dobermann bravo duas vezes... na terceira vez,
ele pode arrancar a bolinha e a sua mão.
E o ponto central do conflito Rússia-Ucrânia é a incompetência do ocidente – os “líderes” ocidentais sabiam que teriam que lidar com um dobermann já em estado colérico, mas o trataram como um shih-tzu. Fingiram lançar a bolinha três vezes e, agora, ficaram sem a mão.
Não se pode aplaudir um dobermann que ataque uma pessoa ou
outro animal, mas tampouco é razoável isentar o incauto que não respeita a
natureza da besta. Alguns séculos antes de Cristo, Esopo já ensinava sobre a essência
do escorpião, mas milênios se passaram e ainda há rãs desavisadas no “comando”
de vários países.
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O ocidente ainda não aprendeu que há diferentes credos,
costumes, sistemas de governo, aspirações sociais e ways of life.
Sempre que o ocidente tenta emplacar em solo estrangeiro uma solução one-size-fits-all,
é um desastre. Vietnã, Coreia, Afeganistão, Iraque, e por aí vai.
O ocidente não pode ser o defensor global da liberdade se
não consegue entender que liberdade é um conceito relativo. O uso da burca pode
parecer tirânico e misógino no ocidente, mas a mulher muçulmana que usa burca talvez não
entenda assim. Nem toda cultura é monogâmica. O homossexualismo é uma ofensa
para vários povos e credos. Para alguns,
o voto obrigatório é sinônimo de democracia, para outros esse arranjo pode soar
insano. Que dizer então de juízes que, monocraticamente, podem encarcerar um parlamentar
ou impedir a publicação de um artigo de revista, ferindo frontalmente direitos
constitucionais, mas clamando-se defensores da democracia? Liberdade é, de
fato, um conceito relativo.
A agenda ocidental que tanto prega diversidade e tolerância torna-se
absolutamente intolerante quando passa de uma certa longitude ao leste. O
paradoxo – ou, em português correto, a hipocrisia – é que só vale diversidade
dentro de um menu degustação ocidental. O chef não trabalha com
pedidos fora da carta.
(Nota: A Inglaterra e outros não se opunham ao regime do apartheid que vigorou até 1994 na África do Sul. Nossos heróis já
morreram de overdose...)
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Essa incompetência crescente encontrou, do outro lado da
mesa, Putin – o dobermann que está salivando pela bolinha desde 2014 e que
agora perdeu a paciência com a dissimulação ocidental. Afinal, a OTAN pautar o
ingresso da Ucrânia, ferindo sua própria tradição de não considerar elegíveis países com disputa territorial, é uma provocação não-trivial. As promessas de cessar a expansão
dos aliados não foram cumpridas, bem como várias cláusulas celebradas em Minsk
há 8 anos.
O day-after da Ucrânia como país-membro da OTAN poderia
muito bem ser uma base de mísseis equipados com ogivas nucleares a 500
quilômetros de Moscou. Uma crise dos mísseis cubanos de 1962 invertida.
Putin resolveu que não chegaria a esse ponto. Sob essa
lente, seria melhor ele aguardar o ingresso do vizinho na OTAN e ter que, futuramente,
agredir um país-membro? Isso seria um ato de guerra aos EUA, Reino Unido, França,
Alemanha, e por aí vai. O ocidente recuaria ou iniciaria uma nova guerra
mundial? Por essa lógica, Putin foi muito mais presciente do que os “líderes”
ocidentais... sempre há o reverso da medalha.
No livro Antifrágil, Nassim Taleb argumenta que conflitos
menores de tempos em tempos são preferíveis a ciclos longos de paz
interrompidos por raros confrontos armados. Segundo ele, a paz prolongada gera um
acúmulo tal de tensões geopolíticas, religiosas e econômicas que tende a
produzir guerras devastadoras. Claro que não se desejam conflitos armados, mas
a situação Rússia-Ucrânia-OTAN poderia ser muito mais perigosa em alguns anos.
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Há uma outra alternativa pior, mas não impossível. O
ocidente provocou, provocou, provocou porque desejava o ataque. Afinal, conseguiria
consubstanciar a demonização de Putin sem ter que sacrificar soldados
americanos, ingleses, franceses, alemães, etc. Ou seja, não estão nem aí para o
povo ucraniano, mas colocam as cores amarela e azul projetadas em seus
monumentos.
Teriam os patetas Macron, Biden e companhia calculado que
angariariam popularidade e suporte postando “eu te disse, eu te disse” no
Twitter? Tudo é possível no metaverso...
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O filme “The fog of war” de 2003 mostra uma
entrevista com Robert McNamara, o secretário de defesa dos EUA na ocasião da
crise de 1962. McNamara explica que os militares americanos defendiam bombardear
Cuba e que estavam a ponto de convencer JFK de que apenas a ação militar
resolveria o impasse. McNamara relata que a situação só caminhou para outro
desfecho quando foi proposto o seguinte exercício de reflexão: “o quê Nikita Khrushchov deseja
colocando os mísseis em Cuba?” e “Khrushchov realmente quer uma
guerra mundial?”.
Pelos ensinamentos de McNamara, uma pergunta crucial é “o que quer o outro lado?”. Há dobermanns irascíveis, mas não é o caso de Putin – ele está longe de ser um tosco atabalhoado, diferentemente de um certo capitão. Conhece História profundamente, tem excelente oratória e exibe incontestável capacidade de liderança. Seus discursos têm consistência e encadeamento lógico. Ele claramente tem planos e não esconde suas diretrizes. Ou seja: é possível e salutar tentar compreendê-lo, e esse exercício poderia capacitar o ocidente a evitar o conflito. Mas a prepotência ocidental só conhece a sua versão de liberdade...
A ineptocracia reina no oeste. Cada vez mais pessoas
despreparadas alcançam postos de comando – Biden, Macron, Bolsonaro, Boris
Johnson, Trudeau. Cada vez menos o ocidente conta com a sabedoria necessária
para aplicar os ensinamentos de McNamara e tentar entender o problema sob a
lente alheia.
As redes sociais potencializam o fenômeno da ineptocracia. O
Twitter é uma excelente ferramenta para vencer eleições, mas uma plataforma inútil
para governar. No passado, a havia enorme interseção entre os skills eleitorais
e os skills de governabilidade, mas hoje em dia esse paradigma foi
quebrado.
Governos disfuncionais vão continuar a aparecer nas “democracias”
ocidentais, com “gestão” powered by Apple ou Samsung. É provável que o ocidente
se torne cada vez mais intolerante a outros “ways of life” e que as
questões internacionais sejam tratadas por dementes que conseguirão a proeza de
fazer o mundo ter saudade do bobalhão Jimmy Carter.
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Ao final do filme, McNamara relata que anos mais tarde
encontrou Fidel Castro. Na oportunidade, formulou três perguntas ao ditador cubano: “havia ogivas
nos mísseis? Em caso positivo, Cuba estava disposta a disparar? Em caso
positivo, o que Fidel achava que ocorreria em seguida?". De acordo com o
depoimento, Fidel teria respondido: “havia ogivas, eu dispararia sem pestanejar
se Khrushchov desse a ordem, e eu tenho certeza de que Cuba seria
varrida do mapa-múndi rapidamente”.
Dobermanns não blefam.
Parabéns pela brilhante e sucinta explanação. É raro ver problemas tão vastos abordados de forma tão abrangente em textos tão "limpos" e provocativos. Obrigado pela reflexão.
ReplyDeleteOsmar , obrigado pelo comentário. Espero que possa visitar o blog e os outros artigos. Abs
DeleteExcelente explanação....e a última frase revela a verdade, pragmática e conclusiva.
ReplyDeleteRoberto, obrigado pelo comentário. Espero que possa visitar os outros posts do blog. Abs
DeleteRealmente um bom comentário.
ReplyDeleteParabéns mas, foi desnecessário fazer uma comparação direta e pontual do Putin com o capitão.
Se formos falar apenas dos vivos ou dos que ainda poderiam assumir novamente algum governo, não dá para comparar nem com o Trump.
Sendo honestos, nosso capitão, se não é para ficar em segundo na lista, deveria dividir o primeiro lugar.
Nem vou perguntar com quem comparar dentro do Brasil. Simplesmente não tem comparação.
E se mesmo o Trump não é o supra sumo, também não tem comparação entre os pares.
E se formos lembrar da história recente, um dos principais nomes que podemos destacar era justamente o de um ex-ator de Hollywood, pasmem.
Nestes tempos estranhos, ser patriota, não roubar e ter interesse legítmo no bem estar do seu povo são mais importantes e inspiradores que o conhecimento e oratória.
Não precisamos de um Dobermann mas, só de não estarmos sendo liderados por um rato já é um grande feito.
Deus queira ainda que tenhamos uma chance real de nos redimir.
Como Brasileiros e como habitantes "inteligentes" do planeta.
Obrigado pelo comentário. Você tem razão sobre o Reagan, escrevi sobre ele e Thatcher em alguns artigos do blog.
DeleteNa minha modesta opinião, o maior erro do capitão foi jamais desligar o modo eleição. Gastou energia demais. Mas esse debate é longo
...
Abs
Considerando a Liberdade um conceito relativo, perigosamente o autor coloca outros valores no mesmo balaio, como o direito à Vida, à Segurança, à Propriedade, etc. Para piorar, ainda rotula de inepto o Presidente da República brasileiro, Bolsonaro, o qual defende, não só por palavras, mas também por atos, todos estes valores. Portanto, se for para relativizar tudo, nem precisamos sair da esfera canina, basta defender os impulsos instintivos e ver no que dá. Pessoalmente, na escada da evolução prefiro subir um degrau acima, onde errar ainda continuará sendo humano.
ReplyDeleteObrigado pelo comentário.
DeleteConsidero que os direitos que você menciona são um conceito distinto de liberdade.
O próprio contraditório aqui valida o ponto de que liberdade é um conjunto de virtudes que depende da percepção de cada um, certo ?
A própria vacinação é um vetor que mostra o quão relativa é a liberdade mesmo em países que respeitem propriedade, vida etc. Em alguns países, o sujeito é demitido se não não vacinado. Em outros não. Em alguns, perde acesso à saúde pública, em outros não. Nesse último particular, poder-se-ia até dizer que perde parte do direito à vida , não? Mas isso é tema para outras discussões.
Quanto ao nosso PR , observe em outros posts do blog que , assim como muitos, eu estava otimista com seu mandato. Mas, assim como outros muitos , achei que foi uma enorme decepção.
Abs
Caso tenha interesse , procure os posts
DeleteO candidato antifrágil
Comissão Uórren
Primeiros erros
Abs
Agradeço a gentileza de sua resposta e o convite para os outros artigos, mas não os lerei. Relativização rima com estagnação e também com decepção.
DeleteÉ muita ignorância da história recente ou foi uma "boutade" escrever que a Inglaterra mantinha o regime de apartheid na África do Sul até 1994? A África do Sul ficou independente da Inglaterra em 1931.
ReplyDeleteDependendo da cidade que você visite , o ressentimento varia. Ingleses, holandeses ou brancos africanos.
DeleteConheço bem a história , porém a visão de negros cujas famílias foram afetadas (inclusive estão sendo indenizadas de desapropriações de imóveis) também considero como relatos históricos . Pode ser ignorância ou naïvité , mas minha opinião é essa.
Obrigado pelo comentário. Abs
Embora valha adicionar que a sensação ao visitar o (incrível) país é que as novas gerações tocam suas vidas. Existe a dívida histórica mas não parece ser um pitch político que abarque muita adesão.
DeleteClaro, não estamos lá no problema para saber . Apenas um dado anedótico.
Salvo engano , a Inglaterra jamais deu suporte a sanções ao regime. Mesmo Thatcher que , como já escrevi, considero um expoente e exemplo do século XX.
Por fim, vc tem razão que a escolha do verbo não foi a melhor. Fiz uma alteração.
Delete