Warren Buffett no Brasil


(Por: Mariano Andrade)

Quem já leu alguma biografia sobre Warren Buffett sabe que ele trabalhou como entregador de jornal quando era garoto. Desde muito cedo, era um obcecado por eficiência, tanto que criou um processo para entregar os jornais mais rapidamente e, com isso, conseguir atender uma maior quantidade de ruas e fazer jus a um pagamento maior.

**

Nos anos 50, Buffett iniciou um private partnership para investir no mercado financeiro. Com os primeiros bons resultados alcançados, foi gerando interesse, atraiu mais clientes e o seu veículo de investimento cresceu. No entanto, mesmo com o aumento dos ativos sob gestão, Buffett jamais constituiu equipe de análise, comitê de risco ou departamento de compliance. Mesmo quando, décadas mais tarde, a Berkshire Hathaway tornou-se uma empresa Fortune 500, a companhia contava com apenas algumas dezenas de funcionários diretos.

O veículo gerido por Buffett podia comprar qualquer ativo. Em geral, investia em ações de companhias listadas, mas esporadicamente adquiria participações em empresas privadas, títulos de dívida, imóveis, etc. Em alguns casos, fazia oferta por todas as ações de uma empresa listada em transações go-private.

Buffett não gostava de dar disclosure a seus cotistas. Entendia que qualquer informação sobre sua estratégia ou detalhes da carteira circulariam e atrairiam outros investidores para os papéis que desejava comprar, elevando os preços e – em última análise – reduzindo a rentabilidade esperada de seu veículo. Ou seja, para proteger o cliente e entregar retornos melhores, mantinha sigilo sobre seu portfólio.

Mais tarde em sua carreira, Buffett converteu a Bershire Hathaway (uma empresa têxtil que o partnership havia adquirido) em seu veículo de investimento e passou a emitir apólices de seguro para alavancar o retorno de seus ativos. O resto da história é bastante conhecido e poucos discordariam de que Buffett é o maior investidor do século XX.

**

E se Buffett tivesse surgido no Brasil?

Criar uma gestora com experiência de alguns anos de sales e análise encontraria dificuldades na CVM e Anbima. Buffett provavelmente teria que contratar pessoas menos talentosas que ele apenas para compor uma equipe “mais robusta” no papel, poder preencher os formulários de due diligence com aquilo que o regulador deseja ver e, finalmente, conseguir as licenças para operar. Tome custo desnecessário.

Comprar qualquer ativo com apenas um fundo? Na-na-ni-na-na. Aqui no Brasil temos fundos de renda fixa, fundos de direitos creditórios, FIAs, multimercados, etc. Cada um no seu quadrado. Mesmo para investidores profissionais, aqueles com mais de R$ 10 milhões de patrimônio em valores mobiliários, há diversas restrições sobre ativos elegíveis e limites de alocação. Buffett teria que ter uns 3 ou 4 veículos, aumentando o custo da estrutura (e reduzindo rentabilidade) e requerendo algumas contratações de back-office apenas para lidar com a burocracia criada pelos reguladores.

Disclosure anual? Nada disso. Teria que reportar o portfólio todo mês para a CVM, dane-se se isso é deletério para o resultado. Poderia requisitar sigilo de algumas posições (ou de todas), mas aí tome mais burocracia e mais back-office para atender os requerimentos necessários para solicitar o não-disclosure... isso tudo sem garantia de que o regulador concederia o sigilo.

Cadê o comitê de risco? Cadê o manual de precificação? E o código de ética da gestora? Qual a data e a composição da mesa da reunião de comitê que decidiu por comprar ações da Coca-Cola? Não tem? Anbima nele, tome multa. “Blink” de Malcolm Gladwell e “Pensando rápido e devagar” de Daniel Kahneman são obras que validam o processo decisório do nosso “sistema 1”, nossa intuição, o ingrediente que garantiu a sobrevivência da nossa espécie por milhões de anos e algumas eras glaciais. Mas, para nossos reguladores, nada disso vale: comitês reduzem risco e/ou necessariamente melhoram as decisões e, portanto, são obrigatórios. Pronto!

Steve Jobs teve a ideia do Apple Store e foi defenestrado pelo conselho de administração da companhia, que lhe concedeu orçamento para duas ou três lojas com o objetivo de constrangê-lo. O conselho entendia que seria um fracasso retumbante e ajudaria a controlar o ímpeto rebelde de Jobs... bem, todos nós sabemos qual foi o resultado dessa empreitada. O comitê teria levado a uma péssima decisão. Mas, para os reguladores brasileiros, todas as gestoras têm que ser iguais: comitê disso, comitê daquilo, manual A, manual B... Tanto se fala em diversidade por aqui, mas na indústria de gestão de recursos todos os participantes são obrigados a ter o mesmo processo decisório.

E por aí vai... O gestor de recursos no Brasil é soterrado por regulação excessiva que em nada protege o investidor, gera enormes custos e atrapalha mais do que ajuda. Eficiência não faz parte do nosso cardápio e, provavelmente, Buffett desistiria da empreitada de gerir recursos no Brasil e voltaria a entregar jornais.

**

Temos um arcabouço regulatório que impede unicórnios como Buffett e, em contrapartida, não evitam fraudes e pirâmides, algumas delas tendo estourado recentemente. Ou seja, nossa regulação é assimétrica para o lado errado. No longo prazo, isso diminui a rentabilidade obtida pelo público investidor e afeta negativamente o estoque de poupança no país, limitando nossa capacidade de investir em formação de capital. A imagem abaixo que circulou nas redes sociais captura bem a situação.



A regulação atual não impede que bancos vendam a seus clientes (especialmente aqueles com pouca instrução financeira) fundos DI com taxa de administração de 3% ou mais. Ou que ofereçam produtos que envolvem riscos relevantes a investidores que não têm condições de entender o que estão comprando (exemplo: COEs). Alô, CVM, cadê a “polícia para quem precisa”? Em contrapartida, as gestoras de recursos independentes são inundadas com ofícios, regras, filtros esporádicos e diversas outras burocracias que em nada contribuem para a segurança do público investidor. Os reguladores, inacreditavelmente, gastam tempo e recursos desproporcionais patrulhando produtos destinados a investidores profissionais (lembrando: aqueles com mais de R$ 10 milhões de investimentos), ao passo que deixam o pequeno investidor desatendido e sujeito a abusos.

Na sopa-de-letrinhas da nossa indústria de investimentos, com FIAs, FIMs, FIDCs, COEs e tantos outros, os veículos que mais fomentam o crescimento são os fundos de crédito estruturado (em geral FIDCs, mas também FIMs dedicados ao setor) e os fundos de participações (FIPs) que investem em empresas privadas. Por incrível que pareça, são exatamente esses segmentos que padecem da maior carga de regulação excessiva e contraproducente. Dois erros não fazem um acerto – a indústria é super-regulada e os setores que mais podem alavancar nosso PIB são os campeões de restrições.

Um exemplo esdrúxulo da assimetria regulatória que é imposta aos fundos de crédito é a necessidade de o gestor justificar a aquisição de cada ativo à Anbima. Ou seja, se um fundo comprar debêntures de Vale (um investimento prá lá de careta), o gestor tem que justificar o racional de investimento, especificar o comitê que aprovou, etc. No entanto, um FIA pode comprar ações de uma empresa em recuperação judicial sem justificar nada. Em finanças, ensinam que dívida é sênior em relação às ações, mas os reguladores parecem não acreditar.

Outro exemplo: um fundo multimercado pode comprar a moeda da Turquia e construir uma posição do tamanho que quiser. Se o fundo tiver acesso a alavancagem, o que geralmente é o caso, pode comprar mais do que seu patrimônio em moeda da Turquia. Pode inclusive comprar opções que expirem em um mês com alto risco de “virarem pó”. Não há qualquer limite imposto pela CVM para esses tipos de aposta, mesmo que submetam o cotista ao risco de perder mais do que seu investimento inicial. Entretanto, para debêntures da Vale ou qualquer ativo de crédito, a ICVM 555 coloca limites máximos de exposição.

Tem mais. Os fundos de pensão, que detêm o capital de mais longo prazo do país e que precisam obter bons retornos para cumprir sua meta atuarial (especialmente no atual ambiente de juros baixos), têm inúmeras regras que limitam sua capacidade de investir. A resolução 4661 (Bacen e CMN) que substituiu a antiga 3792 em nada flexibilizou o escopo e manteve a enorme reserva de mercado para os bancos. Os fundos de pensão não podem, por exemplo, comprar certos títulos de dívida sem fiança bancária – ou seja, parte do retorno que os mutuários do fundo obteriam em operações de crédito é capturado pelos bancos que – adivinhem – cobram bem caro pela fiança. Ou seja, apesar de – em busca de melhores retornos – poderem suportar um duration mais longo e tolerar maior volatilidade de curto, os fundos de pensão tendem a obter retornos piores do que investidores com capital de prazo mais curto, culpa da regulação.

**

Os reguladores colocaram um prêmio enorme no risco de crédito vis-à-vis risco de mercado, esquecendo-se de que – no Brasil – a maioria dos fundos e bancos quebram por risco de mercado e não por conta de eventos de crédito. A regulação assume que o gestor de crédito ou de fundo de pensão é pilantra e, ao invés de punir apenas os malfeitos ex-post, pune todos ex-ante. O remédio mata o paciente e praticamente inviabiliza fundos de crédito e FIPs, além de asfixiar os fundos de pensão limitando os retornos que podem produzir.

Ocorre que, no mercado de crédito, o shadow banking vai existir de qualquer jeito, seja via fundos de investimento ou através de crowd-lending, factoring, ou outros canais. Demanda por dinheiro é um fenômeno muito mais antigo do que fundos ou regulação e, com as restrições de Basileia III, os bancos não serão capazes de suprir a demanda de funding do setor produtivo. Os reguladores pioram ainda mais este desbalanceamento de oferta e demanda, sufocando o setor de fundos de crédito e, inadvertidamente, criando mais espaço para pirâmides financeiras e/ou modalidades mais caras e com gestão menos capacitada.

Sem funding adequado, nosso PIB terá crescimento mais limitado do que poderia alcançar. A regulação excessiva e descabida na indústria de fundos (principalmente de crédito e FIPs) é um grande componente invisível dentro do tão conhecido custo Brasil.

Melhor investir dinheiro em ações da Berkshire Hathaway.


(P.S. Os corpos técnicos dos reguladores – CVM, Anbima e Bacen – são extremamente capazes e preparados para atualizar o arcabouço regulatório. É importante que ataquem esta agenda o quanto antes.)

Comments