Avião sem asa

 

(Por: Mariano Andrade)


“Avião sem asa, fogueira sem brasa, sou eu assim sem você (...) Eu não existo longe de você, e a solidão é meu pior castigo.” (Adriana Calcanhoto)


Esta semana, um dos assuntos mais comentados foi o barraco instalado em um voo comercial do Rio de Janeiro para BH. Uma moça que estava sentada na janela recusou-se a trocar de lugar com uma criança birrenta, apesar dos protestos e da agressividade da mãe do menor. A moça simplesmente manteve a calma e ficou no “seu espaço”, enquanto a mãe (ou outra pessoa, não ficou claro) filmava a situação achando que conquistaria apoio nas redes.

A cena do avião de fato ganhou as redes e, felizmente, a maior parte dos comentários foi em suporte à atitude da moça. Ela manteve-se calma e polida, preferiu ficar no lugar que havia comprado – um direito que lhe cabia – e acabou ganhando exposição e seguidores.

Por outro lado, o público conseguiu perceber que a mãe da criança tentava passar a terceiros a “culpa” de a vontade de seu filho não ser realizada. Ainda bem que era só um assento na janela, poderia ser um bilhete premiado da mega-sena, uma Ferrari ou, pior, um revólver. Vários posts chamaram atenção para essa “transmissão de responsabilidade” que, infelizmente, viralizou na sociedade moderna.

**

Dissonância cognitiva é um conceito que tenta abarcar situações em que o indivíduo possui ideias contraditórias sobre um determinado tema, quando ele se apresenta em diferentes ocasiões ou diferentes formatações ("framing"). Ou quando uma pessoa age em desacordo com aquilo que pensa/sabe.

(Muitas vezes é hipocrisia, e não dissonância cognitiva.)

O termo foi cunhado pelo psicólogo Leon Festinger na década de 1950 e há vários artigos disponíveis online com exemplos interessantes. Todos nós já exibimos comportamento dissonante em algumas ocasiões.

**

Provavelmente, dentre os milhares de pessoas que conseguiram detectar que a mãe da criança birrenta projetava a responsabilidade da frustração (e do mau comportamento) de seu filho em outrem, existem muitas que são alheias ao fato de que políticos tentam usar do mesmo expediente amiúde. O termo “herança maldita” está para o vídeo da discussão no avião assim como políticos estão para a mãe da criança.

Se você acredita quando políticos da situação colocam a culpa em governos anteriores, especialmente se forem adversários políticos, cuidado! Você pode estar em uma situação de dissonância cognitiva.

A maioria das pessoas é pai/mãe por escolha. Criar o filho, dar-lhe limites, dar-lhe modos é algo trabalhoso. Analogamente, assumir um cargo público e fazer gestão de forma exitosa também requerem um grande esforço. Portanto, quando alguém concorre a uma eleição ou aceita a nomeação para uma posição na gestão pública (uma escolha), citar gestores anteriores é algo que tem que ser usado com muita parcimônia, sob o risco de usar a terceirização da culpa como maquiagem para o próprio insucesso ou incompetência.


**

O governo Lula 3 é um desastre no campo econômico. Lula nomeou uma equipe muito fraca, sem nenhum expoente da iniciativa privada (na iniciativa privada, terceirizar a culpa normalmente não “cola”). O resultado recente – dólar a R$ 6.00 e juros futuros no patamar de 15%aa – é a colheita do que foi plantado.

Fernando Haddad é maior expressão do despreparo da equipe de Lula – é uma pessoa com uma caneta poderosa, mas que não tem a menor ideia de como funciona a economia real, nunca empreendeu, nunca sentiu na pele o que é recolher impostos, lidar com mudanças tributárias ou com inflação de insumos produtivos. Não tem estatura ou vivência para o cargo ocupado.

Os mais velhos lembrar-se-ão de Satoru Nakajima, piloto de F1 japonês que, com suas barbeiragens, provocava situações terríveis nas corridas, algumas cômicas, outras perigosas. A equipe de Lula é como Nakajima – sendo que aqui, o carro já está capenga, com trinca no aerofólio, pneu careca e câmbio claudicante. Por quê? Medidas eleitoreiras do fim do mandato anterior? Sim, mas longe de terem sido as responsáveis pelos danos. Que tal olhar para a lamentável PEC da transição, as mudanças tributárias irresponsáveis e inconsequentes de Haddad, o fim do bem-sucedido teto de gastos para implementar um arcabouço fiscal ineficaz (“if it ain’t broke, don’t fix it, stupid”), e a gastança desenfreada de Lula? Você apostaria em um piloto fraco com carro ruim? Não. E se ele pusesse a culpa nos mecânicos? Também não.

O anúncio do pacote de corte de gastos foi a cereja do bolo. O “plano” anunciado tentou enganar o mercado com economia crescente no ano de eleição. Ademais, o que era para ser um pacote fiscalmente austero veio com o anúncio populista e inconsequente de uma renúncia tributária (as “bets” abriram champanhe). Os preços de ativos brasileiros desabaram, mas a inepta equipe tenta passar a mensagem de que o mercado exagerou, ou de que o mercado está especulando contra o governo ou que a equipe pegou uma herança maldita. Às vezes, a projeção de culpa é personificada em Bolsonaro, Paulo Guedes ou Roberto Campos Neto de forma barulhenta, deselegante e que ofusca o barraco do avião.

Essa terceirização de culpa só agrava a situação. A mãe da criança chorona talvez seja processada por difamação e exposição indevida da moça. O governo reclamão se afunda cada vez mais quando aponta o dedo e esbraveja, levando consigo o preço dos ativos brasileiros, fazendo juros e dólar dispararem, o que vai gerar inflação, falta de confiança e, ultimamente, menos crescimento.

O leitor deve evitar a dissonância cognitiva ao ser confrontado com as duas situações. Comprar essa ladainha de culpar terceiros é apostar no mau piloto que culpa outros por sua má performance.

**

Diferentemente da canção, nosso avião tem asas em perfeito funcionamento, o governo anterior não as arrancou, mas os pilotos atuais são incompetentes e desqualificados para conduzir a aeronave.

Também diferentemente da canção, nossa fogueira tem brasa sim. E os birrentos desse governo nada fazem além de jogar mais brasa no fogo.

A atitude deplorável da equipe petista projetando responsabilidade em outros comprova que o PT “não existe longe” dos seus antagonistas políticos. Em termos absolutos, o governo Lula 3 é um desastre, e por isso a solidão é seu pior castigo.


 

(P.S. – Um ensinamento de graça para Haddad e companhia: fazer justiça social com tributos em um país pobre é a receita para se chegar rápido ao fundo do poço. É o equivalente a substituir seus melhores jogadores com 5 minutos de jogo. É criar uma perenidade na má alocação de capital. Nunca funcionou em lugar algum ou época alguma e jamais funcionará.

Políticas de distribuição de renda bem-sucedidas têm que ser feitas com o bolo de riqueza crescendo. Para o bolo crescer, o governo tem que abraçar os empreendedores de todos os tipos, mas com carinho especial para os bilionários, aqueles que criaram riqueza de uma forma desproporcional. Se esses empreendedores notáveis forem perseguidos, demonizados, e/ou tributados de maneira assimétricas, vamos perdê-los. Perdem todos. O bolo não cresce como poderia e sobram migalhas para distribuir.)


Comments