X-frágil

 (Por: Mariano Andrade)


“It's gonna take a little faith to see / The mission, it all comes down to me / And only me”

(Styx – “Radio Silence”) 


“He was a man out of time, man out of time / Thought he was crazy, he was one of a kind”

(Tesla – “Edison’s Medicine”)

 

Styx e Tesla são duas bandas americanas de rock que ostentam excelentes catálogos. O CD “The mission” (Styx) foi lançado em 2017, é um álbum conceitual com o tema da colonização de Marte. O grupo Tesla batizou-se como tal em homenagem ao brilhante Nikola Tesla, entendendo que não teríamos certos equipamentos musicais se não fossem algumas invenções/descobertas do cientista. A faixa “Edison’s medicine (Man out of time)” figura no terceiro álbum da banda (o espetacular “Psycothic supper” de 1991) e conta a história da famosa “guerra das correntes” em que a tecnologia de Nikola Tesla (corrente alternada) disputava com a patente de Thomas Edison (corrente contínua) nas primeiras licitações para distribuição pública de energia elétrica. Obviamente que a proposição de Tesla era melhor, ela é usada até hoje e a corrente contínua de Edison jamais teria massificado o acesso à energia elétrica. (Para evitar dúvidas, o “man out of time” e “one of a kind” da canção era Nikola Tesla, e não Thomas Edison)

Para falar sobre Elon Musk, as letras das duas canções servem como boa introdução e têm eco em alguns trechos deste (longo) artigo.

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A palavra “Musk” significa “almíscar”, uma substância muito usada pela indústria de cosméticos, notadamente como fixador de fragrâncias. Elon Musk, além de ter “ideias fixas” (péssimo trocadilho...), seguirá firme como uma figura de destaque da sociedade – portanto, o sobrenome parece bastante adequado.

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A biografia “Elon Musk” de autoria de Walter Isaacson é uma leitura muito recomendada para entender a história, os métodos, as realizações e as “missões” de Elon Musk. Especialmente para aqueles que não acompanharam de perto (a exemplo deste escriba) como Musk se tornou o homem mais rico do mundo, como ganhou projeção social e política e como revolucionou diversas indústrias, o livro é fundamental – quem quiser criticar Musk, pode criticar, mas que o faça com conhecimento de causa.

    

Biografias podem ser viesadas. Porém, Isaacson é um biógrafo respeitadíssimo e relata que Musk não leu o livro antes da publicação e tampouco influenciou com quem Isaacson deveria ou não conversar durante seu processo de pesquisa. Assim como no caso da biografia de Steve Jobs, Isaacson colheu opiniões bastante diversas sobre o biografado, inclusive de desafetos, adversários, ex-mulheres, ex-sócios e executivos que foram demitidos.

(Os dois livros são espetacularmente escritos e com conteúdos interessantíssimos. A diferença, na opinião deste autor, é que ao final tem-se a impressão de que Jobs era uma pessoa má e motivada por interesses mais egoístas e por oportunidades de negócios. Musk, ao contrário, dá a impressão de ser uma boa pessoa, motivada por interesses mais sociais e nobres, buscando realizar missões e não primordialmente ou necessariamente capturar oportunidades de lucro.)

Cabe uma mea culpa. Devido ao estilo impulsivo de Musk, este autor tinha a impressão de que havia muita fanfarra e publicidade em torno do empresário, sem conhecer muito sobre suas ideias e realizações. O livro realmente dá detalhes incríveis que mostram como o sucesso de Musk é uma combinação de foco, determinação, assunção de riscos e, ultimamente, amor à humanidade.

Isso mesmo – amor à raça humana. Musk cita como maior risco da humanidade o declínio persistente da taxa de natalidade. Ele incentiva todos a terem muitos filhos, tendo ele feito uma sólida contribuição pessoal com 12 filhos. A colonização de Marte ultimamente serve, segundo Musk, como um repositório da consciência humana, caso haja uma guerra nuclear na Terra ou o planeta esgote seus recursos e não possa mais abrigar toda a população. Pode ser puro marketing, mas não parece que isso seja necessário a essa altura e com a fortuna já acumulada.

Ao final do livro, o leitor conclui que parlamentar brasileiro que chama Musk de “vagabundo” ou pessoa pública que manda um “fuck you” para Musk são, no mínimo, extremamente desinformados (e mal-educados, por óbvio).

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Uma conclusão lendo a biografia de Elon Musk é que ele é um ser humano singular, daqueles “one of a kind” e “out of time” que se afastam 100 desvios-padrão à direita da média e que fazem a humanidade dar saltos quânticos (qualquer comparação é arriscada, mas pensem em Louis Pasteur, Albert Sabin e outros deste calibre). As “missões”, como Musk gosta de qualificar suas empreitadas, dependem dele – algumas mais do que outras (colonizar Marte, por exemplo). Apesar dos brilhantes times de engenheiros em cada uma de suas empresas, Musk é o fio-condutor, a adrenalina, o tocador de bumbo – ele é essencial para que se tenha o mission accomplished até sua morte.

Ao contrário do que disse nosso infeliz parlamentar, não há nada mais distante de Musk do que “vagabundo”. Ele quase não dorme, quase não desfruta de sua colossal fortuna – ele é o que mais trabalha em seus projetos, por vezes morando semanas dentro das instalações da empresa e até improvisando um colchão no chão de fábrica. Musk não fica em uma torre de mármore dando ordens: ele gosta de ficar próximo aos engenheiros escrutinando cada detalhe fabril de cada componente, cada etapa do processo produtivo, cada oportunidade de redução de custo ou incremento de eficiência.

Musk tem seu “algoritmo”, várias vezes referenciado no texto. Questionar cada especificação/exigência, eliminar cada parte/processo que seja possível, simplificar/otimizar os processos que restam, acelerar a produção e, por fim, automatizar. Musk percebeu que a automatização precoce muitas vezes suprimia o pensamento crítico sobre o processo produtivo, gerando – ao final – retrabalho, gastos e ineficiência.

Ele tem uma verdadeira obsessão por custos e materiais. Seu mantra é “se você não reintroduziu pelo menos 10% do que cortou no algoritmo, é porque não apagou etapas suficientes”. O livro mostra que, na SpaceX, Musk questionou a massa e o custo de cada pequena peça de cada protótipo de foguete (reduzir a massa é importante para majorar a probabilidade de êxito do lançamento, e para poder embarcar um número maior de satélites ou astronautas) – em certa ocasião, indagou o porquê de uma válvula custar USD 50.000 se o material nela contido poderia ser adquirido por USD 500. O engenheiro respondeu “porque é feita para foguetes, e porque a NASA paga esse tanto”. Neste momento, Musk criou o “idiot index”, uma razão entre preço de mercado da peça e o valor do material – quanto maior o índice, maior a oportunidade de corte de custos e maior a urgência em atacar aqueles componentes. (No caso da válvula, Musk adaptou uma válvula similar fabricada para carros, em outras ocasiões usou peças de pias de banheiro.)

Musk mudou a indústria de foguetes ofertando preço fixo nas licitações da NASA, enquanto o establishment trabalhava com modelo “cost plus” o que não incentivava inovação e eficiência. O modelo de receita fixa quase quebrou a SpaceX (assim como a Tesla e o Twitter quase quebraram também, por outros motivos), mas Musk assumiu os riscos e continuou a missão. Ao final, reduziu o custo por lançamento em mais de 90%, bateu recordes de massa colocada em órbita, viabilizou a Starlink e conseguiu criar tecnologia que permite reutilização dos foguetes (segundo Musk, algo indispensável para tornar a humanidade interplanetária). Depois de Musk, foguetes sim dão ré.

Há histórias similares nas suas outras companhias. Musk revolucionou as indústrias de foguetes, serviços de internet, carros elétricos, meios de pagamento e mídias sociais. Foi instrumental nas inovações e no impulso a carros autônomos e robôs. E, finalmente, a Neuralink trabalha em chips que poderão devolver a deficientes o movimento dos membros, a visão e a audição, conforme seja o caso – já há um bom progresso. Nenhum “vagabundo” realiza um milésimo disso.

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O livro mostra que, desde muito jovem (algo com 19 ou 20 anos de idade), Musk já via claramente seus três objetivos de contribuição à sociedade: massificação de carros elétricos/energia limpa, acesso rápido à internet no mundo inteiro, colonização de outro(s) planeta(s). Essas são suas “ideias fixas” desde muito cedo. Mais tarde, veio seu apreço pela liberdade de expressão, pela produtividade (daí os robôs e carros autônomos) e pela missão da Neuralink.

No livro “Antifrágil”, o autor Nassim Taleb mostra como a natureza e as espécies possuem um processo de fortalecimento bastante peculiar – os indivíduos são sacrificados, mas a população torna-se mais resiliente. Quando há um novo vírus, é inevitável que indivíduos morram, mas o obstáculo será eventualmente suplantado e a população remanescente terá construído defesas naturais para aquele ofensor.

Elon Musk – até por sofrer de algum grau de autismo (Asperger) – não possui boa leitura de pessoas e suas emoções e individualidades. Tem impulsos incontroláveis, que geram brigas, sequelas, tuítes irresponsáveis e afins. Desta forma, ao longo dos anos, acumulou executivos com demissões sumárias, processos legais, episódios grosseiros de insensibilidade e inúmeros atritos com sócios e familiares. Alguns indivíduos e relacionamentos são sacrificados, mas Musk e a humanidade saem mais resilientes. Este é o ponto-chave para entender Elon Musk.

No Twitter, Musk demitiu 70-80% da equipe. Havia muitos militantes do wokeísmo, muitas benesses para os funcionários e pouco comprometimento. Também havia diversos vieses na gestão da empresa que não coadunavam com a missão de liberdade de expressão (amplamente comprovados ex-post). Após todo o processo de transformação de Twitter para X e o sacrifício de vários indivíduos, a companhia hoje parece mais forte, quiçá seja mais lucrativa e certamente proporciona um ambiente mais propício e democrático para as pessoas se expressarem, qualquer que seja seu viés político.

(Rapidamente sobre a cultura woke – Originalmente, Musk era alinhado aos democratas, tendo tido bom relacionamento com Barack Obama. Frustou-se com a agenda progressista/woke pela doutrinação escolar, pelo “coitadismo”, pela apologia à não-assunção de riscos, pelo vilipêndio do sucesso, dentre outros. Quando chegou ao Twitter, confirmou suas hipóteses, encontrando marasmo e comodismo, bem como viés político sobrepondo-se à liberdade de expressão, na forma de vários filtros de conteúdo. Confirmou que o debate científico saudável havia sido censurado na época do Covid, algo mortal para Musk e mortífero para a humanidade. Verificou que alguns engenheiros inclusive haviam escrito códigos secretos para derrubar toda a rede do serviço caso “não curtissem” o novo dono, tamanha a militância. No primeiro mandato de Trump, Musk achou o presidente um sujeito medíocre – talvez ainda ache, mas isso só demonstraria como o mundo precisava de uma inflexão poderosa.)

Na sua antifragilidade, Musk não tem tolerância à hipocrisia. O livro mostra que ele esculachou Bill Gates merecidamente – Gates fazia (e faz) teatro como defensor do clima, mas detinha uma aposta bilionária “vendida” (short) nas ações de Tesla. Musk arrebatou em uma reunião entre os dois: “você é um hipócrita ao posar como ativista climático ao mesmo tempo que fica vendido em Tesla, a companhia que mais fez pela energia limpa em nosso planeta”. Na antifragilidade, o apreço não é pelo indivíduo, não importa o quão poderoso seja ele, mas pelo bem maior da população, the greater good.

Musk parece sempre colocar a humanidade em primeiro lugar. No campo da inteligência artificial, o livro mostra como ele sempre prezou pela segurança dos humanos perante a rápida evolução da tecnologia. A preocupação era sempre dotar qualquer IA de mecanismos nativos que impedissem que robôs ou computadores se voltassem contra homens e mulheres individualmente ou contra a sociedade em geral – inspirando-se nas leis da robótica de Isaac Asimov. Larry Page, da Google, discordava de Musk e esse foi o motivo do rompimento empresarial entre os dois.

Portanto, mandar Musk “se foder” é como mandar a humanidade se foder.

(Analogamente, qualquer política pública ou governo que foque no indivíduo – ou em seus votos – está fadada a não atingir o bem comum. Esta é uma lição que muitos políticos não aprenderam, apesar de inúmeros fracassos em suas esteiras... Nem é necessário citar nomes, Brasília está cheia deles. Cotas universitárias, bolsa família ou qualquer projeto assistencialista são remédios paliativos e, portanto, deveriam ser temporários durante o tratamento da raiz do problema... a questão é que poucos querem tratar a raiz do problema.)

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Por fim, o dinheiro. Musk acumulou um patrimônio valorado em mais de USD 400 bilhões, uma fortuna pessoal sem precedentes. O livro dá a entender que riqueza material nunca foi a função-objetivo de Musk – quando vendeu a Zip2 por algo como USD 25 milhões (USD 18 milhões pós-tributos), Musk comprou um carro de USD 1 milhão, colocou “meros” USD 3 milhões no banco e usou o restante para investir no que considerava as “missões” – colonização interplanetária, carros elétricos e internet acessível no mundo inteiro, não exatamente empreitadas seguras. Alguns chamam de apetite a risco, Musk parece enxergar como etapas necessárias para atingir um fim.

A certa altura, Musk vendeu todos os seus imóveis e foi morar em um trailer próximo a uma de suas plantas. Musk quase não tira férias – assim como Steve Jobs, seu maior luxo parece ser um avião particular, o que faz sentido pois o tempo é a moeda mais escassa. E Musk sabe que ele é o bastião das “missões”. Como diz a canção, “the mission, it all comes down to me. And only me.”

“Musk, você daria todo seu dinheiro agora para ter imediatamente: uma colônia funcional em Marte com a tecnologia para ir e vir, carros elétricos e autônomos representando 80% da frota global, cobertura global de internet de qualidade, liberdade de expressão para todos os cidadãos do mundo, chips que devolvam aos humanos todas as suas funções motoras, cognitivas e sensoriais e, finalmente, robôs capacitados a realizar 80% das tarefas que humanos realizam e com segurança de que a IA não vai se voltar contra a humanidade?”. A biografia leva o leitor a entender que a resposta seria um vigoroso “sim”.

Reduzir um inovador como Elon Musk ao seu posicionamento político ou a algum tuíte infeliz, isso sim é “vagabundagem”. Esses merecem um “fuck you”.

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E, para concluir, algumas previsões.

Caso Musk não brigue com Donald Trump, o potencial para o DOGE (Department of government efficiency) é muito alto. Musk conseguiu reduzir o custo de foguetes em mais de 90%, parece bastante apto (obstinado?) a identificar ineficiências no orçamento federal. Claro que enfrentará deep-state, lobbies e animosidades, mas lembrem-se da natureza do antifrágil: os indivíduos são sacrificados, a população se robustece. É possível que o DOGE reduza o custo do governo federal em alguns pontos percentuais – um chute? De 3 a 4 pontos, com skew para uma economia maior. Como já declarou Peter Thiel, ex-sócio de Musk na PayPal, “never bet against Elon”.

Na sua cruzada pró liberdade de expressão, Musk não deve ter engolido a suspensão do X no Brasil ou o confisco (ilegal) de fundos da Starlink. Com Musk dentro do governo e com acesso à massa de dados de inteligência, esta história está longe de terminar. Talvez os próximos capítulos sejam públicos, talvez se desenrolem no âmbito diplomático e o público só saberá ex-post. Mas o Brasil tem muita relevância geopolítica para calar seu povo e se alinhar cada vez mais às ditaduras chinesa e iraniana.

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E, para fechar o texto, outra canção do CD “The misson” do Styx. A faixa “The greater good” é o momento do álbum em que o primeiro homem chega a Marte. “The greater good”,  o bem maior, o bem comum – o objetivo central de Elon Musk, para quem lê a biografia com o copo meio-cheio e a mente aberta. A interseção da letra, não só com a temática, mas também com o perfil obstinado e incansável e com a grandiosidade de propósito depreendidos do livro é muito interessante, mas “Radio silence” continua sendo a melhor faixa do CD, fica a dica!


You could lay down, in this hole you dug / Just fade away into the red sand / But we all know, it's not who you are / You've come too far to be stranded on this star

But we're not here to take a prize / You know, just open up your eyes (…)

For the greater good (…)

But this is so much bigger than anyone imagined (…)

But you are not here on your own / We've got your back, we'll make it home / We're wide awake, there's so much to be done / (…) They'll know we gave it everything we had

For the greater good (…)

One day this place may be our grave / But if we die by the gods, we'll be saved / For the greater good (…)

(Styx – “The greater good”)


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