Gene Simmons, o lendário baixista do Kiss, é um gênio do
marketing. Junto com Paul Stanley montou a banda com a clara missão de ganhar
dinheiro através do entretenimento. A música era parte importante do conteúdo,
mas o Kiss sempre foi uma experiência mais completa. A banda inovou o cenário
do rock com uso de maquiagens, fogos, pirotecnia e teatralidade. O sangue
escorrendo da boca de Simmons e o vôo de Paul Stanley durante a execução de “Love
gun“ eram parte do espetáculo.
E como deu certo! O modelo comercial aliado ao inegável
talento musical de Paul Stanley tornou o Kiss um fenômeno de vendas e público, enriqueceu
os dois sócios e pariu um sem-número de clássicos do rock.
Simmons e Stanley faziam rock, mas sempre sintonizados com as
tendências do público consumidor. Quando a música disco dominou as paradas, o
Kiss lançou o álbum “Dynasty”, que continha batidas mais dançantes e cujo carro-chefe
“I was made for loving you”, ainda hoje é tocada em boates. Quando a MTV pedia
baladas melosas, a banda gravou “Forever”. Quando o grunge tomou de assalto a
cena musical, o Kiss lançou álbuns mais pesados, como “Revenge” e “Carnival of souls”.
Quando as maquiagens perderam o appeal, a banda as aboliu. Muitos anos
mais tarde, fez uma turnê comemorativa colocando de novo as maquiagens. E por
aí vai.
Os shows do Kiss sempre começam na exata hora marcada e com
a mesma narração nos PAs... “You want the best, you got the best. The
hottest band in the world: KISS”. Autopromoção na veia! Os músicos de apoio
que comprometeram o bom funcionamento do modelo foram demitidos ao longo do
caminho, fosse por uso de drogas, por anseios de carreira solo em paralelo, ou
outro motivo qualquer... nem mesmo doença era motivo para parar de rodar a máquina, o que gerou revolta dos fãs de Eric Carr na época.
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Durante a década de 1980, a banda foi acusada de satanista.
Gene Simmons se apresentava com maquiagem demoníaca (seu personagem era o “Demon”),
os membros tocavam usando botas com saltos enormes e havia boatos de
que eram usadas para pisotear pintinhos durantes os shows. A teoria conspiracionista
sustentava que KISS era um acrônimo para Knights In Satan’s Service. Gene
Simmons pronunciou-se sobre essas polêmicas com uma declaração que revelou seu gênio
comercial: “falem mal, mas falem de mim”. Mesmo antes da era da informação na ponta dos dedos,
Simmons havia percebido que polêmica atrai interesse, que atrai receita, e que
se converte em lucro.
O especial de Natal do Porta dos Fundos gerou uma enorme
polêmica, que se converteu em interesse (muitos assistiram ao filme por conta
da polêmica) e que ocasionou a renovação de contrato do grupo com a Netflix.
Será que o Porta dos Fundos usou a fórmula consagrada por Gene Simmons?
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Há piadas apropriadas e inapropriadas. Há piadas engraçadas e
sem-graça. O Porta dos Fundos começou com sketches bastante engraçados,
mas sempre testando a fronteira entre o apropriado e o inapropriado. Não foram
nem os primeiros e nem os últimos a fazê-lo. Contudo, o especial de Natal é deveras
inapropriado e extremamente sem-graça. O milagre (com trocadilho) do marketing
foi transformar conteúdo medíocre em um must-see. Gene Simmons ficaria
orgulhoso.
O filme tem um mero punhado de piadas repetidas à exaustão:
os reis magos reclamando de ter que ir ao aniversário de Jesus e levar
presentes, Deus fazendo o braço de José cair, Deus paquerando Maria, todos
fazendo graça com a inaptidão de José na carpintaria e, por fim, Jesus gay.
Cada uma dessas situações é repetida pelo menos cinco vezes durantes os
intermináveis 45 minutos do filme. Se a via crúcis cristã tem 14 estações, a via
crúcis do Porta dos Fundos tem apenas cinco piadas... e todas ruins... e repetidas
por 45 minutos. Credo! É um material sem-graça pacas.
Além disso, é bastante inapropriado. O filme satiriza dogmas
da igreja católica como a virgindade de Maria. Além disso, retrata Deus como um
ente desagradável (em bom português, babaca), no que o texto provoca não só
os católicos, mas também judeus e muçulmanos, pois todos têm o mesmo Deus. O
Jesus gay, aparentemente o centro nevrálgico da polêmica, é o que parece menos
grave, pois naquele período do império romano o homossexualismo masculino não
só era aceito como era bem difundido.
Polêmica instalada, os membros do Porta dos Fundos não recuaram,
não se desculparam, não se retrataram. Ao contrário, jogaram querosene na
fogueira, seguindo à risca a cartilha do Kiss. Em entrevista à revista Época (não
exatamente um veículo isento), compararam Jesus Cristo a uma “parábola”
qualquer, tal qual Chapeuzinho Vermelho e a Pequena Sereia. Das duas, uma: ou são
ignorantes a ponto de duvidar da existência do homem Jesus e de seu séquito
(algo exaustivamente documentado – “Zelota” de Reza Aslan é uma ótima leitura),
ou – muito mais provável – quiseram alimentar ainda mais a polêmica. Lembrando:
polêmica, interesse, lucro.
Mais tarde, em artigo no jornal, tacharam de ratos e
monstros aqueles que criticaram o Porta dos Fundos, pois estariam atentando
contra a liberdade de expressão e a produção artística. Haja autopromoção! O Porta dos Fundos está
longe de ser um Salman Rushdie e o especial de Natal não é o novo “Versos
Satânicos”. É apenas um filme sem-graça e inapropriado. Não é herege (pois não tem
tom de seriedade), não ensejará juras de morte de católicos fervorosos e é
discutível se pode ser catalogado como arte.
Cenário mais provável: o Porta dos Fundos assumiu o risco
consciente de ofender bilhões de pessoas mundo afora ao satirizar elementos e personagens da fé cristã. O
grupo fez uso da liberdade artística, mas já esperava retaliações acaloradas. Os
humoristas sabem que a terceira lei de Newton continua valendo no mundo real e também
conhecem a eficácia da estratégia de criar barulho. Claro que não esperavam o reprovável
e lamentável ataque com explosivos, mas felizmente não houve feridos e o
episódio acabou virando ainda mais lenha na fogueira.
Assim como o Kiss era atento às oscilações da preferência
musical do público, o Porta dos Fundos sabe que hoje há concorrência de várias
outras trupes humorísticas que ganham espaço no Youtube e redes sociais. Por
isso, quanto mais polêmico seu material, mais o Porta dos Fundos consegue gerar
visualizações e proteger market share.
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Infelizmente, no Brasil, vigora o tratamento assimétrico
para questões sociais e vale a ditadura das minorias. Satirizar a maioria pode (no
caso, a fé cristã). Mexer com as minorias é fascismo. Será que o Porta dos
Fundos ousaria fazer um filme ridicularizando o candomblé, os índios, os
quilombolas, os negros ou os gays? Não há
coerência em achar cabível ironizar Cristo, Maria e os dogmas católicos e se
revoltar quando alguém diz que Brigitte Macron é baranga, ou querer crucificar
(com trocadilho) os brasileiros envolvidos no episódio “buceta rosa” na copa da
Rússia. São todas elas piadas inapropriadas, se têm ou não graça pode ficar a
gosto do freguês.
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O Porta dos Fundos já exibiu Jesus como bêbado e agora o
caracterizou como gay. Com a recente renovação de contrato para um novo
especial de Natal em 2020, fica a dúvida se Jesus será retratado como pedófilo,
drogado, traficante, cafetão ou algo pior. Uma coisa é sabida: a fórmula do
marketing já está posta, ela não prescinde de polêmica, mas não precisa necessariamente
ter graça.
O Kiss é de fato uma empresa. Produzem diversos itens de merchadise,
até mesmo caixões! A qualidade humorística do Porta dos Fundos poderia ser
enterrada em um deles.
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