(Por: Mariano Andrade, inspirado na ideia do meu amigo
Ricardo)
A primavera ucraniana foi um movimento popular espontâneo, iniciado no fim de 2013 e se estendendo até fevereiro do ano seguinte. A população havia eleito o presidente Viktor Yanukovytch, cuja plataforma incluía o ingresso do país na União Europeia. Contudo, depois de eleito, Yanukovytch mudou de lado e se aproximou de Putin, frustrando o sonho de prosperidade e liberdade de milhões de eleitores.
Os protestos começaram na Praça Maidan em Kiev e rapidamente
atraíram pessoas de todo o país – jovens, adolescentes, adultos, idosos. Foram
organizadas marchas até o parlamento, no intuito de cobrar uma ação do
legislativo a respeito do estelionato eleitoral.
Além dos manifestantes acampados na praça, havia o movimento
Automaidan. Eram centenas de pessoas que circulavam as imediações dirigindo seus
próprios carros, servindo de sentinela e apoio logístico.
O governo respondeu com violência. A polícia especial Berkut
usou bombas, armas de fogo, cassetetes de ferro, produzindo mortos e feridos
durante os meses do protesto. A Berkut também destruiu os carros dos
participantes da Automaidan, violando a propriedade privada.
Ao fim e ao cabo, o movimento venceu. O presidente renunciou
e fugiu de Kiev, sendo que o parlamento convocou novas eleições para dezembro
de 2014.
A história (nesse caso, História com maiúscula) é contada de
forma magistral no documentário “Winter on fire – Ukraine’s fight for freedom”. A produção
mostra imagens da época e depoimentos atuais de alguns dos participantes.
Algumas declarações reverberam na cabeça do espectador:.
“Se nos calarmos agora, teremos
que nos calar para sempre.”
“As pessoas protestam porque
estão cansadas e enojadas.”
“Nunca seremos escravos.”
“As pessoas saíram às ruas e mostraram que nós temos o poder.”
(Será que a Netflix pensou em usar o título "Democracia em vertigem" para esse documentário?)
As manifestações populares que eclodiram no Brasil após a
apuração oficial do TSE trazem muita semelhança com a primavera ucraniana. É
uma Praça Maidan made in Brazil.
Trata-se de movimentos espontâneos, com gênese pacífica, e
sem uma liderança com interesses políticos ou econômicos. Tal qual os
movimentos populares que o Brasil vivenciou em 2013, cujo estopim foi o aumento
da tarifa de transporte público, mas que escalaram para uma cobrança da sociedade
pelos desmandos e desvios da classe política. Ficou claro naquele momento que os
políticos não representavam o povo.
Hoje, os manifestantes parecem pedir, sobretudo,
transparência no processo eleitoral. Há diversos estudos que mostram várias
aberrações estatísticas nos dados oficiais da apuração (probabilidade ínfima de
ocorrer), há inúmeros eleitores nas redes sociais que mostram que suas seções
não aparecem na contagem divulgada pelo TSE, há clips de eleitores que foram
votar e foram alertados que já haviam “votado”, enfim, a lista de
intercorrências é extensa.
O relatório das Forças Armadas, de escopo limitado por
definição, demonstra falhas de segurança e prováveis vulnerabilidades no
processo. O objetivo do estudo nunca foi determinar se houve ou não fraude, e
tampouco foram disponibilizados insumos para viabilizar tal análise. Contudo, o
parecer das Forças Armadas lança uma dúvida razoável sobre a higidez da
apuração, em total desacordo com a infantil propaganda do TSE de que o sistema
é inviolável. Qualquer profissional de TI sabe que não existe ambiente
inviolável – não fosse assim, não haveria tantas fraudes cibernéticas mundo
afora, bastaria que bancos, lojas on-line, Google, Apple, NASA e CIA contratassem
o TSE.
Portanto, a persistência dos manifestantes não é calcada em
suposições ou ilações. Há legitimidade mais do que suficiente para cobrar uma
investigação séria e isenta sobre o pleito eleitoral. O poder emana do povo e ora
ele quer saber, beyond reasonable doubt, se sua vontade foi refletida no
resultado e se o presidente eleito representa, de fato, a maioria. Se as
autoridades entendem tal ímpeto como antidemocrático ou golpista, significa que
não há mais democracia e que o golpe já foi perpetrado.
As altas cortes desdenham das dúvidas e questionamentos que
pairam sobre o processo eleitoral. “Perdeu, mané” é a expressão mais tosca do
repertório com que os ministros já nos brindaram. O presidente do TSE, por seu
turno, comparou a possibilidade de fraude à existência de vida extraterrestre –
péssimo exemplo, se o magistrado pesquisasse veria que esse tema é um debate
antigo no meio científico, havendo pesquisadores reputados que defendem que a
probabilidade de haver vida (não necessariamente inteligente) no espaço é bem
alta. Também há linhas de pesquisa que concluem o oposto – a probabilidade seria
baixa. Mas, crucialmente, não há nenhum cientista que proclame seu parecer como
definitivo, à prova de bala ou inviolável.
(P.S. O dom da palavra parece faltar ao magistrado. Na
verdade, sua declaração foi “pode haver vida extraterrestre, também pode não
haver”. Nesse caso, há que se concordar que há 100% de certeza nessa
declaração, mas ela não serve de nada. É como dizer “amanhã pode chover ou
não”, “o Brasil pode ou não ganhar a Copa”, “houve fraude, ou não houve”.)
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É curioso que a mídia critique as manifestações,
classificando-as como “antidemocráticas”, “golpistas”, “ilegais”, e por aí vai.
Não há indício de que as manifestações de 2013 no Brasil e na Praça Maidan
tenham sido adjetivadas dessa forma.
A imprensa, que aplaude as canetadas, perseguições e multas que
acometem empresas e indivíduos idôneos que apenas pedem explicações, deveria
também aplaudir a covardia da Berkut, muito bem retratada no documentário,
inclusive com disparos contra membros da Cruz Vermelha e destruição de remédios
em unidades médicas de apoio. Será que se o movimento brasileiro escalar para a
violência (tomara que não aconteça), a imprensa endossará bombas, cassetetes de
ferro, mortos e feridos, tudo em “defesa da democracia”?
As autoridades já tentaram impedir as famílias de levar suas
crianças aos locais de vigília, já ameaçaram confiscar água mineral e alimentos
das tendas de apoio. Agora, o TSE convocou os comandos das PMs estaduais. para
uma reunião extraordinária. Mas tudo isso é democrático, certo? Imprensa, algo
a dizer sobre a nossa Berkut?
O governo ucraniano “dobrou a meta” quando o conflito piorou,
baixando leis ridículas: proibição de uso de capacetes, proibição de cinco
carros ou mais trafegarem juntos (mesmo em funerais e casamentos), proibição de
erguer palanques ou palcos, etc. A nossa versão é diferente – censura e
suspensão de redes sociais, ou seja, tudo muito mais democrático. Sem qualquer pio
da imprensa ou careta enojada do William Bonner.
Já se observa que alguns cúmplices da campanha de Lula –
economistas famosos, Simone Tebet e outros – começam a fazer água. Criticam o
objetivo de gastança do PT, menos de um mês depois do pleito. Seriam eles
também antidemocráticos? Afinal, também estão protestando à sua maneira. Não,
não são antidemocráticos, são apenas irresponsáveis, embora a mídia não tenha
coragem de dizê-lo. Como formadores de opinião, apoiaram um indivíduo inepto,
ex-condenado por corrupção e sem qualquer plataforma de governo – deram-lhe um
cheque em branco e agora reclamam do valor com que ele preencheu o cheque.
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Os ucranianos protestavam contra um presidente eleito. Não
se contestava o resultado das urnas. Sob esse prisma, pode-se dizer que o nosso
movimento é ainda mais legítimo do que a Maidan. Ou será que só haverá direito
de protestar se Lula não entregar cerveja e picanha, estelionato eleitoral já
contratado para quem sabe fazer conta?
O poder emana do povo e seus mandatários são transitórios,
embora eles teimem em esquecer isso. Esticam a corda até um ponto em que perdem
o controle. É impossível calar todos, como Yanukovytch pôde constatar. A imagem
seguinte fecha o artigo melhor do que o autor poderia.
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