Minority Recalque

 

(Por: Mariano Andrade)

O filme Minority Report de 2002 é um thriller de ficção científica com enredo bastante engenhoso. Ambientado nos EUA de 2054, o filme mostra que o país havia levado a taxa de assassinatos a zero com a implementação do departamento Pré-Crime. John Anderton, protagonista estrelado por Tom Cruise, chefiava o Pré-Crime. A inteligência policial era construída sobre as previsões de três videntes e permitia prender os assassinos antes que cometessem os delitos.


**

Os recentes acontecimentos na Petrobrás são um assunto bastante traiçoeiro. É muito fácil, ao analisar a situação, derrapar para uma discussão política. Mas esta não é a intenção aqui – ao contrário, apenas analisar a histeria da imprensa especializada (e também da não-especializada) no que tange o assunto governança.

A imprensa é o quarto poder, isso é sabido e – de certa forma – desejável. A imprensa tem o papel de informar, exigir transparência dos entes e pessoas públicas, moderar os debates e explorar pontos de vista menos óbvios. Infelizmente, cada vez mais a imprensa se desvia de seu papel, como J. R. Guzzo registrou com absoluta maestria há poucas semanas num artigo irretocável. https://jovempan.com.br/opiniao-jovem-pan/comentaristas/j-r-guzzo/imprensa-se-mostra-incapaz-de-exercer-sua-atividade-natural-e-se-torna-uma-religiao.html

No atual episódio da Petrobrás, a imprensa assumiu o papel do departamento Pré-Crime. Não está sozinha, pois muitos analistas de mercado fizeram coro. Acusam, em uníssono, o presidente Bolsonaro de intervir na política de preços da companhia após ele haver indicado o General Luna para substituir o atual CEO da companhia uma vez findo o mandato vigente.

O departamento Pré-Crime do Brasil deve contar com videntes bastante competentes. Indicar o CEO da Petrobrás ao Conselho de Administração, especialmente ao se avizinhar o término do mandato em curso, é um ato ordinário do acionista controlador, a União. Esta deliberação está na alçada do Presidente da República. Não obstante, nosso departamento Pré-Crime, ao saber que Bolsonaro havia usado esta faculdade que lhe cabe, foi rápido em detectar um malfeito futuro e já expedir a condenação.

Obviamente que o governo Bolsonaro decepciona em várias pautas econômicas, é demasiadamente beligerante e incapaz de desligar o “modo eleição”. A comunicação é tosca, desastrada, amadora – e no assunto Petrobrás não foi diferente. Mas a cultura da presunção de culpa, que tanto assola o país e é fruto de lamentos e críticas da sociedade esclarecida, recebeu um abraço fraternal da imprensa e dos analistas de mercado. Bolsonaro foi julgado culpado antes que se prove inocente, haja vista as declarações de acionistas minoritários e seus representantes, as sonoras recomendações de venda (algumas emitidas durante o fim de semana) e a queda das ações da companhia. Departamento Pré-Crime em plena ação.

**

Vejamos, porém, os fatos.

Uma rápida consulta à lista de CEOs da Petrobrás mostra que boa parte dos executivos não dura mais do que 2 anos ou 2 anos e meio no posto. Normalmente, quando o chefe do executivo muda, o executivo é substituído, mesmo durante o regime militar essa foi a praxe. O cargo não é de longo prazo, quando muito de médio prazo (em raras instâncias no histórico até agora), e Bolsonaro não está fazendo nada de inédito. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_presidentes_da_Petrobras

O mandato do atual CEO tem término previsto em março de 2021, este foi o prazo conferido a ele pelo Conselho de Administração. Portanto, ao contrário dos alardes, Bolsonaro não está “entrando de sola” e tampouco demitindo Castello Branco, apenas não indicou sua recondução ao cargo. É bem diferente. Bolsonaro está seguindo à risca o rito previsto, porém escolheu um outro nome para o próximo período.

Os méritos da gestão de Castello Branco também são méritos de Paulo Guedes que recomendou o executivo a Bolsonaro. E, portanto, também méritos de Bolsonaro que acatou a sugestão. Por que o Pré-Crime assume que a indicação atualmente em pauta será lesiva à companhia se a equipe econômica e o Presidente da República até agora somam um acerto em uma tentativa?

Tem mais: Castello Branco foi infeliz ao afirmar recentemente que a questão dos caminhoneiros “não é problema da companhia”. Cabe lembrar que, há alguns meses, Bolsonaro foi duramente criticado pela imprensa e opinião pública – e mereceu a reprimenda – quando respondeu “e daí?” a um repórter que lhe informara o número de vítimas do Covid naquele dia. A mesma insensibilidade de Bolsonaro acometeu Castello Branco, mas parece que aqui valem dois pesos e duas medidas.


Aliás, à luz da pauta ESG, como se pode admitir que o CEO de uma empresa gigantesca como a Petrobrás, cuja condução afeta milhões de outros agentes econômicos no Brasil e mundo afora, dê de ombros para um problema social? Pior, um problema social que paralisou o país por duas semanas em 2018 e causou perdas econômicas enormes a diversas famílias e pequenos empresários. Será que, apesar da pretensa clarividência sobre o futuro, o nosso Pré-Crime se esquece do passado com tanta rapidez assim?

A estrutura de governança da empresa foi preservada por ora, não foi alvo de interferência como parecem reportar a mídia e os analistas. Os avanços recentes nos âmbitos dos conselhos e comitês permanecem intactos, tanto é que o nome indicado pela União ora é objeto do escrutínio previsto. Bolsonaro pode tentar mudanças para desestruturar a governança? Sim, pode – e será dura e merecidamente bombardeado por críticas se o fizer. Mas onde foi parar a presunção de inocência?


Por ora, filme que está passando por aqui é o “Minority Recalque”. Quem compra a ação de uma empresa controlada, assume riscos. A Petrobrás não é diferente – é pior, pois o representante do controlador muda a cada 4 ou 8 anos. Se o mercado não percebera que Bolsonaro é mandão e trombador, estava deitado em berço esplêndido.

A conclusão é polêmica e dissonante da maioria, fato. Mas será que um ângulo diferente sobre a matéria não pode revelar alguns erros cognitivos?

**

A título de comparação, muito pior foi a interferência do PT na Vale a partir de 2008, aquela sim uma "entrada de sola". O governo Lula, insatisfeito com alguns desinvestimentos e demissões realizados pela empresa, bombardeou publicamente o então CEO Roger Agnelli sem qualquer cerimônia. Houve tentativa de agremiar votos dos fundos de pensão acionistas da companhia para demitir Agnelli, sem qualquer consideração por governança, minoritários ou mesmo beneficiários dos fundos de pensão investidos na companhia. Além disso, o governo moveu mundos e fundos para que a empresa investisse em projetos siderúrgicos, de rentabilidade sabidamente ruim, como forma de gerar empregos e atender a agenda político-eleitoral do partido. Será que a imprensa se esqueceu disso tudo, visto que não houve qualquer artigo traçando um paralelo entre as duas situações?

De novo – não há nada auspicioso nos movimentos belicosos de Bolsonaro e seu governo decepciona bastante, mas houve um exagero notável da imprensa e do mercado no episódio de Petrobrás. Questionar a capacidade de Luna para assumir o cargo é legítimo e salutar. Afirmar que Luna tem a missão (e que irá cumpri-la) de interferir nos preços é Pré-crime. Julguemos quando/se acontecer.

**

O filme tem uma reviravolta quando as videntes vêem Anderton cometendo um crime no futuro e ele passa a ser procurado pelo departamento Pré-Crime. Ao longo de uma agitada sequência de eventos, Anderton consegue provar sua inocência e que o departamento Pré-Crime falhara.

Será que o departamento Pré-Crime do Brasil admitirá sua falibilidade caso, na nova gestão, a ação tenha um bom desempenho? 


Comments