A morte do genocídio

(Por: Mariano Andrade)


Ruanda, 1994


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Ariano Suassuna é uma referência habitual nos textos deste blog. Figura fantástica e autor atemporal, ele realmente faz muita falta. Seu jeito autêntico e engraçado de discorrer sobre certos assuntos conseguia engajar o ouvinte (ou leitor) e, no processo, prepará-lo para ser convencido do óbvio – uma tarefa muitas vezes nada trivial.

Por exemplo: convencer o mais ferrenho opositor de Bolsonaro de que o presidente não é um fascista. Impossível, não? Ou, então, convencer certos governadores de que a desastrada gestão sanitária não é genocídio. Talvez ainda mais complicado, certo?

Ariano Suassuna to the rescue.

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Uma das passagens mais interessantes do mestre pode ser vista no clip abaixo. Ariano indigna-se com um artigo que enaltecia a Banda Calypso como “a verdade do povo brasileiro” por ser “super brega”, tal qual a "cara do Brasil". Suassuna descasca a (falta) de qualidade da produção artística recente com elegância e precisão. Mas a verdadeira lição é ministrada quando Ariano discute o trecho da matéria que reputava o músico Ximbinha como “um guitarrista genial”:

“Olhe, eu sou um escritor brasileiro.  A língua portuguesa é meu material de trabalho. Se eu gasto um adjetivo como genial com Ximbinha, o que eu vou dizer de Beethoven? Tem que inventar outra palavra.”

https://www.youtube.com/watch?v=TQbqRon4-gQ

Ariano ficou deveras incomodado com a banalização da cultura brasileira e com o mau emprego do termo “genial”, tanto é que repetiu o discurso algumas vezes. Este outro clip segue o mesmo tom, mas é igualmente merecedor da atenção do leitor.

https://www.youtube.com/watch?v=XLrCp-D3TEw

Imaginem se Ariano tivesse vivido para testemunhar os talentos de Pabllo Vittar ou Valesca Poposuda? Talvez ele mesmo voltasse atrás e classificasse Ximbinha como genial, magistral, redentor. Que tristeza! No fundo do poço sempre tem um alçapão...

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A argumentação irretocável do mestre seria muito útil hoje em dia. A banalização de verbetes como fascista ou genocida certamente capturaria a atenção de Ariano e ganharia sua crítica definitiva e definidora.

Vejamos: segundo o dicionário, fascismo tem a seguinte definição.


Ou seja, definir o governo Bolsonaro como “fascismo” é um impropério, teríamos que inventar uma outra palavra para Mussolini e outros governos ditatoriais. Ao que consta, houve eleições livres em 2020 e com participação multipartidária. Bolsonaro não impediu os certames. Além disso, um governo que visa ter um sistema unipartidário deveria estar empenhado em extinguir partidos existentes, mas Bolsonaro, ao contrário, tenta criar o seu partido.

Não se trata de defender Bolsonaro, uma franca decepção, um sujeito amador e despreparado. Mas sim demonstrar que há um endêmico mau uso da liberdade de expressão (opa, se ela existe não há fascismo!) e que seus praticantes só contribuem para a maléfica polarização política e, perversamente, para a consolidação de Bolsonaro como um dos polos.

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O que dizer do vocábulo “genocídio”? Eis a definição do vernáculo:

Resta óbvio que criticar o lockdown, defender escolas em funcionamento integral ou mesmo sair às ruas são atitudes que não coadunam com a definição de genocídio. "Ah, mas tudo isso contribui para aumentar a propagação do vírus e causar mais mortes!", diria o observador casual. Mesmo assumindo que a afirmação seja verdadeira (muitos cientistas e estudos sustentam que não há correlação alguma), e ainda admitindo haver pessoas que desejam a maior propagação do vírus (lembrando que Lula disse "ainda bem que a natureza criou o vírus"), não se trata de atos genocidas. A não ser que essas pessoas tenham a tecnologia de programar o vírus para atingir somente os grupos étnicos ou religiosos que almejam exterminar.

Ou, na simplicidade de Suassuna, que palavra inventaríamos para adjetivar Hitler? Ou o confronto em Ruanda que vitimou 800 mil pessoas da etnia tútsi?

O Brasil aniquila o vocábulo “genocídio” e o mundo inteiro destrói o significado de “fascismo” – imprensa, cantores de rock decadentes e pretensos intelectuais. Uma ofensa coletiva às famílias que realmente sofreram com regimes ditatoriais ou que foram tocadas por verdadeiros genocídios.

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Jornalistas, políticos, influenciadores digitais e todos os cidadãos deveriam ter cuidado ao usar palavras com essa carga e potência. Existem pessoas “meio chatas” e “meio esnobes”, mas não existe ninguém “meio genocida” ou um regime “meio fascista”. 

Portanto, para que a crítica ao governo Bolsonaro ou a qualquer outra pessoa ou entidade mereça respeito e atenção, o autor deve medir corretamente as palavras. Termos grosseiramente mal empregados produzem uma forma tosca e imperfeita, o que denuncia uma essência viesada, biliar, comprometida e – ao fim e ao cabo – inútil.

Ariano Suassuna teria uma maneira GENIAL de demonstrar isso. Fica aqui minha humilde tentativa. 


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