A invenção da democracia

 

(Por: Mariano Andrade)


“Democracy is not an easy form of government, because it is never final; it is a living, changing organism." (Ilka Chase)

 

O filme “O primeiro mentiroso” (The invention of lying) de 2009 é uma comédia ambientada num mundo onde os humanos não conhecem a possibilidade de mentir. Por uma circunstância fortuita, Mark, o personagem que protagoniza o filme, “inventa” a primeira mentira e ela dá certo: quando o caixa do banco pergunta qual o saldo de sua conta (vez que o sistema havia caído), Mark lhe diz um valor maior do que aquele que de fato possui e – bingo! – o funcionário credita-lhe o dinheiro.

Como os demais seres humanos não conhecem o instituto da mentira, o protagonista monopoliza o seu uso, conseguindo para si seguidas vantagens e se tornando rico e famoso.

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Numa recente palestra no exterior, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que durante sua gestão no TSE teve que “oferecer resistência aos ataques contra a democracia e impedir o abominável retrocesso que seria a volta ao voto impresso com contagem pública manual”. O ministro foi interpelado por uma participante que contestou a sua afirmação, argumentando que não havia pleito para contagem manual.

Um outro participante fez coro na réplica ao que Barroso retomou a palavra e disse que o discurso oficial (seja lá o que for isso) era “abre aspas”, disse ele, “contagem pública manual”, “fecho aspas”, “ponto”.

Ao que a primeira participante responde: “abre aspas”, “mentira”, “fecha aspas”. O ministro Barroso classificou a interrupção como um déficit de civilidade, algo que – segundo ele – acomete nosso país. Estranho que um democrata não seja afeito ao contraditório e à liberdade de expressão... Mas, “seguimos viagem”, parafraseando o ministro.

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Antes de prosseguir, abro parênteses.

Ministro, vai aí uma dica de Língua Portuguesa: ao fim de uma citação, o ponto final fica dentro das aspas. Então seria: “ponto”, “fecho aspas”.

Fecho parênteses.

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Embora a fala de Barroso não ligue explicitamente a eventual contagem manual ou o voto impresso ao que chama de “ataques à democracia”, em várias outras ocasiões o ministro já fez essa correspondência direta. Ou seja, entende-se que classifica o voto impresso como antidemocrático.

Democracia significa, resumidamente, um sistema onde o povo é soberano e, como tal, elege seus governantes. É um conceito bem antigo, certamente o ministro o sabe, e que em muito precede qualquer tecnologia computacional. Precede, inclusive, a própria invenção da imprensa.

Portanto, a maneira como o povo expressa sua vontade nada tem a ver com a vigência ou não de democracia. A manifestação de voto pode ser gestual, oral, escrita, secreta, aberta, ou em bits e bytes. Todas essas mecânicas, e suas respectivas apurações, podem conviver com a vigência de um sistema democrático. Não há nenhum antagonismo pré-definido.

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Uma das grandes conquistas da sociedade brasileira foi a volta das eleições diretas para cargos executivos após o fim do regime militar (e, na verdade, houve uma eleição direta para governadores ainda durante o mandato de João Figueiredo). Naquela época, o voto era proferido numa cédula eleitoral que o votante depositava numa urna. Essas urnas eram recolhidas e levadas para centros de apuração, onde os votos eram contados por ao menos duas pessoas, sendo que os partidos podiam colocar fiscais nas mesas de apuração.

Ineficiente? Sim. Demorado? Sim. Sujeito a erros? Sim. Antidemocrático? Claro que não.

(Parênteses: As eleições diretas para presidente vieram mais tarde, mas o movimento das "Diretas já" ficou marcado na história recente do país. Por outro lado, não se tem notícia de manifestações "Diretas com urna eletrônica sem voto impresso e sem contagem manual".) 

Ainda hoje, mesmo havendo tecnologia para votação e apuração eletrônicas, diversos países preferem o sistema de voto impresso e/ou contagem manual. Muitos outros usam um sistema híbrido, com a urna eletrônica imprimindo um voto que é depositado fisicamente em uma outra urna, criando a possibilidade de uma auditoria ou recontagem. Seriam esses países governados por tiranos autocratas? Não! Há eleições livres normalmente, exatamente conforme prevê cada constituição. E, entende-se, a vontade do povo é acatada. Voilà

Vejamos alguns países que Barroso, pela lógica que expôs, classificaria como não-democracias: Suécia e Noruega (voto impresso e contagem manual), França e Reino Unido (voto impresso), Bélgica e Índia (urna com impressão de voto), Holanda e Alemanha (proibiram as urnas eletrônicas, considerando-as inconstitucionais).

Aliás, o Brasil é um dos pouquíssimos países (três, segundo várias fontes) que usa o sistema “caixa preta” sem voto auditável em eleições gerais (alguns países usam o sistema em eleições municipais, sempre com número bem menor de votantes). Assim sendo, torna-se uma audácia do ministro Barroso bradar que qualquer sistema com voto impresso e/ou contagem manual é um ataque à democracia. É um papel ridículo e um desserviço no campo diplomático – muito mais grave do que se referir à covid-19 como o “vírus chinês”.

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Talvez seja só a mania do brasileiro de deitar em berço esplêndido. A nossa urna “inviolável e de alta tecnologia” foi cancelada no Paraguai e no Equador, suplantada por tecnologia mais segura e confiável. Mas, por aqui, a gente sempre acha que faz o que há de melhor no mundo. Por isso que não progredimos tecnologicamente, futebolisticamente ou como sociedade. Por isso que nosso processo político não foi capaz de produzir nada melhor do que Lula x Bolsonaro.

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Tal qual o personagem do filme, o STF passou a se julgar o monopolista da democracia. Tudo que questiona a opinião de seus integrantes é automaticamente antidemocrático. É uma aberração que essa “democracia” tão ferrenhamente defendida pelo STF não tenha espaço para discussão, vez que o debate tornou-se antidemocrático.

Nessa realidade distópica (não a do filme, a brasileira), qualquer proposta com o condão de robustecer o sistema de votação e apuração, aumentando a garantia de que a vontade do povo prevaleça ao fim e ao cabo, é tachada de “ataque à democracia”. Kafka está orgulhoso.

Ou, talvez, havia apenas um nada e o ministro Barroso inventou a democracia tal como o personagem do filme. É a única explicação para que nenhum órgão de imprensa ou formador de opinião tenha sublinhado o absurdo e a deselegância de sua declaração.




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